O ato de definir metas tem sua importância reconhecida por todos já há um bom tempo. No âmbito pessoal, muitos hão de concordar que estabelecer para si mesmo um peso ideal a ser alcançado é mais eficaz no emagrecimento do que não fazê-lo. No trabalho, é comum termos que atingir metas relacionadas com nossa função: realizar um determinado número de consultas por dia, reduzir custos operacionais em 10%, atingir um determinado número de vendas, etc. Enfim, parece ser uma crença amplamente disseminada na sociedade a de que o estabelecimento de metas tem forte impacto sobre as nossas ações. Subjacente a esta crença está a visão de natureza humana segundo a qual somos seres prospectivos, orientados para o futuro e não apenas determinados pelo nosso passado.
As metas estão sob os holofotes há bastante tempo no mundo do trabalho e, consequentemente, na Psicologia Organizacional e do Trabalho. Taylor, aquele mesmo do “estudo dos tempos e dos movimentos”, já discutia a importância de metas para o desempenho dos trabalhadores. Mace também dedicou-se ao estudo do tema nos anos trinta. Contudo, especificamente para a psicologia do trabalho, é a partir da década de sessenta que os conhecimentos acerca do impacto das metas sobre o comportamento humano no trabalho alcançam uma maior sistematização. Neste período, aquilo que era um aglomerado de resultados, advindos de estudos isolados uns dos outros, passa a tomar forma de uma teoria.
A Teoria do Estabelecimento de Metas é, em geral, atribuída a Locke e Latham. Mas não se pode ignorar o fato de que o mérito destes autores foi, sobretudo, o de sintetizar resultados de estudos dispersos (incluindo os seus próprios) e torná-los um todo inteligível. Para não cometermos qualquer injustiça, podemos dizer também que a teoria enquadra-se numa perspectiva bem mais ampla acerca da motivação humana denominada abordagem dos processos de auto-regulação. Sob este rótulo, Kanfer e Bandura, por exemplo, deram grandes contribuições ao estudo dos efeitos das metas no comportamento.
Grosso modo, a Teoria do Estabelecimento de Metas supõe que grande parte do comportamento humano resulta de intenções e metas escolhidas pelos sujeitos. Assume também que o desempenho no trabalho é maior quando temos metas do que quando não as temos. Mas, de que forma isso acontece?
O raciocínio é relativamente simples: as metas direcionam os esforços do indivíduo, energizam suas ações, fomentam a persistência em tais ações e instiga o desenvolvimento de estratégias para resolução de tarefas. A motivação é influenciada por desafios tais como as metas altas – ou seja, metas de desempenho que apresentam relativa dificuldade – e metas específicas.
Aliás, essas são as duas evidências mais sólidas relativas à teoria:
a) objetivos ou metas específicas (ex. produzir dez peças em uma hora) resultam em maior desempenho do que metas vagas (ex. “faça o seu melhor”) e que
b) metas difíceis resultam em maior performance que metas consideradas fáceis.
Em outras palavras: mais vale estabelecer como meta perder um determinado número de quilos do que simplesmente dizer que quer emagrecer. E, além disso, mais vale tentar emagrecer 5kg do que 3kg.
É notável o prestígio deste corpo teórico. Mais de mil artigos na década de noventa trataram diretamente do tema. E esse prestígio não está apenas entre acadêmicos, mas também entre gestores. A teoria tem inspirado uma série de práticas gerenciais ao redor do mundo. A gestão por objetivos (Management By Objectives – MBO) é um exemplo de sistema de gestão forjado sobre o conhecimento acerca das metas. Entretanto, e como em tudo o que alcança este nível de prestígio, o lado perverso das metas não tardou em aparecer.
Há duas formas distintas de ver o lado perverso do estabelecimento de metas: a) uma que diz respeito ao uso errado que se faz das metas, por parte de gestores (o que, muitas vezes serve para justificar relações de trabalho desumanas e exploratórias) e b) outra que se refere aos efeitos colaterais próprios do estabelecimento de metas.
Como vimos em Herzberg, gestores têm uma tendência especial para filtrar de evidências empíricas aquilo que servem aos seus propósitos. Vêem determinados aspectos e ignoram outros e, não obstante, julgam suas ações como fiéis aplicações da teoria como um todo. Eis algumas das práticas que ilustram isso. É frenquente encontrarmos gestores que:
1. Ignoram o papel das aptidões e competências pessoais na consecução das metas (atribuindo metas que demandam uma qualificação superior àquela do empregado);
2. Ignoram a influência de fatores externos que dificultam ou mesmo inviabilizam a consecução das metas (mantendo uma meta de vendas fixa de um período a outro sem considerar a entrada de novos competidores ou as crises no setor em que o mesmo está inserido).
3. Muitas vezes embaçam a linha que separa o que é desafiador do que é impossível e, dessa forma, estabelecem metas absurdas para seus subordinados.
4. Apenas impõem as metas sem dar margem para negociação (embora a maior parte dos estudos não tenham encontrado diferenças entre os efeitos de metas impostas e de metas participadas sobre o desempenho, é possível que isto se deva a um aspecto cultural, já que a maior parte dos estudos foi realizada na América do Norte).
5. Ao mesmo tempo que estimulam a competição – quando, por exemplo vinculam promoções ao atingimento de metas – negligenciam a interdependência entre as tarefas dos empregados. Dessa forma geram um ambiente em que dificilmente haverá cooperação o que, por sua vez, levará à não-consecução das metas individuais.
Eu poderia listar ainda uma grande quantidade de distorções. Mas o essencial disto tudo é que estas formas selvagens de aplicação da teoria produzem precisamente o efeito contrário do que gestores inicialmente pretendem com programas de estabelecimento de metas. Aqui as metas passam a ser desmotivantes, estressantes, frustrantes, etc.
De qualquer forma, nesse caso não é a teoria em si que é afetada: afinal, os problemas supracitados são gerados pela deturpação das proposições teóricas de Locke e Latham.
Contudo, não podemos dizer o mesmo sobre o outro lado perverso do estabelecimento de metas. Este sim, constitui efeitos colaterais que a teoria não contempla mas que merece sua atenção. Um desses efeitos é muito simples: ao mesmo tempo que as metas estimulam o desempenho, estimulam também comportamentos anti-éticos. E aqui não cabe dizer que são as deturpações da teoria que o fazem. Não.
Num estudo recente (Schweitzer, Ordoñez & Douma, 2004), estudantes tinham que realizar uma tarefa de formação de palavras. Aos participantes de um grupo foi estabelecido uma meta para cada indivíduo. Em outro grupo os estudantes eram encorajados a “dar o seu melhor” na tarefa, sem uma meta específica. Por cada palavra formada a partir de um anagrama ganhava-se dinheiro. Aos sujeitos de ambos os grupos era dada a oportunidade de mentir sobre o número de palavras formadas.
Verificou-se que os indivíduos que não atingiram suas metas mais frequentemente mentiram que aqueles aos quais foi dito apenas pra “dar o seu melhor”. A probabilidade era maior ainda quando estes indivíduos deixaram de atingir suas metas por muito pouco. Esse é apenas um dos muitos estudos que tratam dos efeitos perversos das metas. Há outros que tratam, por exemplo, dos efeitos prejudiciais do comprometimento com uma meta inalcançável.
Podemos transpor os resultados deste experimento para nossa experiência de trabalho. Não julgo ser difícil lembrarmos de situações em que, para atingir suas metas, as pessoas fizeram de tudo. Tudo mesmo. Num mundo em que se valorizam chavões como a “proatividade”, a “competitividade”, a “orientação para o resultados”, não é surpresa ver que muitos pensam que os fins justificam os meios. E tal situação (parafraseando Camus) é apenas trágica se temos consciência da mesma. Muitos não têm. E orgulham-se disso. E assim o fazem porque são valorizados no seu meio justamente por isso.
Não sei, porém, se as metas geram comportamentos anti-éticos por si mesmas ou se, de fato, elas são apenas mais um instrumento de gestão que, inserido num contexto que favorece a o descaso com o outro e a relativização de valores na busca de resultados, terminará por levar a culpa sozinho.
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7/12/2008 - Excelente texto
Postado por Anônimo
Borba, excelente texto. bastante esclarecedor e bem fundamentado. Particularmente, penso q a meta é fundamental para alcançar os resultados. Agora, a meta deve ser possível de ser realizada numa relação entre o que eu tenho (capcidade intelectual, tempo etc.) e o que posso conseguir (resultado do investimento). outro ponto que considero importante, não é apenas a meta em si, mas como vc se organiza para alcançá-la. nesse sentido, atingir a meta sem planejamento adequado é difícil, especialmente as mais ambiciosas. colocar as metas e planejar as etapas (recursos, datas limites etc.) no papel/organograma é fundamental. visualizarmos literalmente as coisas, eu penso q é importante. sucesso na coluna e um abraço do compadre. Fábio.
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8/12/2008 - Commentário Sem Título
Postado por Anônimo
Meu amigo Fábio, Obrigado pelo comentário. Concordo com o que diz. Aproveito apenas para esclarecer algo que, ao reler o texto, imaginei que pudesse vir a causar algum mal-entendido. Resolvi me antecipar. Quando falo que os gestores filtram as informações sobre uma ou outra teoria para aplicá-la da forma que melhor servir aos seus interesses, não estou me referindo a um processo necessariamente consciente. Isso im****ria aos gestores uma "maldade" que, quero crer, não existe na maior parte das situações. A seleção das informações é um processo absolutamente corrente para nós todos. É, aliás, necessário que façamos isso diariamente em nome da nossa "saúde cognitiva". Portanto não se trata de ação deliberada. Até porque as distorções que fazem da teoria do estabelecimento de metas é que fazem com que estes não consigam bons resultados com seus subordinados. era isso grande abraço, Diogo
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8/12/2008 - Metas escravocatas
Postado por Anônimo
Diogo Parabéns pelo excelente artigo. Fizestes um ampla abordagem do assunto, sem no entanto aprofunda-lo. O que está correto. Dá-se apenas os motes. Senão o blog viraria uma "aula on line" , o que não é a meta do mesmo. Gostaria que emitisse sua opinião sobre o que chamo, conhecço na prática e ví, de metas escravocatas. Darei um exemplo que acontece com frequencia com a indústria de confecção de fundo de quintal e de "grandes grifes", aqui em mossoró, especificamente quando havia a fábrica da Guararapes, mas que serve para cortadores de castanha, empacotadores de sal etc. Uma costureira com 10 anos de profissão faz em média 300 colarihos de camisa/dia. Meta - dobrar todo dia durante todo o mês. Se falhar um dia no perído perde a comissão. Evolução - A costureira vai levar um mês para conseguir dobrar ( todas que passarem de 300 mais não alcarem as 600, fica para o dono da fábrica. Quando atinge as 600 terá que mante-las, como já foi dito. Qualquer acidente de percurso ( doença, morte de parente etc) que a faça perder um só dia de trabalho e não chegar à meta ( todos os dia utéis de trabalho) ela perde tudo. Nada mais a comentar desculpe se me alonguei. ISTO È UMA COISA REAL> não é lendia e nem fricção como diz Zé Lezin. Sei que é uma aborbadem mais trabalhista que científica, mas gostaria que falasse um pouco sobre o caso e sua implicações na ótica organizacional Joel Borba
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8/12/2008 - Metas Escravocratas
Postado por
Quando descreveu a situação no comentário sobre as metas escravocratas a primeira coisa que me veio a cabeça foi a inglaterra do século XIX. A situação das costureiras pode ser comparada, guardadas as devidas proporções, àquela dos trabalhadores da indústria inglesa no começo da revolução industrial. A sensação de absurdo é a mesma que temos ao ler a descrição e discussão exaustiva que Marx faz da evolução das leis fabris na europa do século XIX. Ou seja, aqui não se trata de distorções da teoria por parte dos gestores, apesar da semelhança com algumas daquelas listadas. No caso das costureiras o fato de que os gestores tenham recorrido às metas passa muito pouco pela noção de que as metas de desempenho possam ser estimulantes, motivantes. Trata-se, acho eu, de exploração no sentido mais claro do termo. Pouco interessa o bem-estar do trabalhador e nada se investe na promoção de uma relação saudável e significativa entre o trabalhador e seu trabalho. Pelo contrário. Portanto não caberia dizer que o gestor em questão estivesse interessado em gerir pessoas mas simplesmente em conseguir resultados a curto prazo. Agora, não sei de que época estamos falando, mas isso acontece ainda na China, no Brasil, em Honduras, e por aí vai. Muitas vezes em fábricas que produzem produtos para marcas de renome (se alguém pensou em Nike não fui eu quem disse..ehehehe). O que favorece ações deste tipo não são apenas culturais (na medida em que muitas populações as relações exploratórias ainda são tacitamente aceitas) mas principalmente econômicas: num contexto de desemprego estrutural a costureira lá pode ser vista como força de trabalho descartável. Se ela não concorda com as condições precárias que você descreveu, há muitas que o farão. As metas nesse contexto apenas integram um sistema de consequências absolutamente voltado para a punição.
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