No livro “A Dança dos Deuses”, Hilário Franco Júnior nos mostra, através de uma infinidade de informações, como, principalmente no decorrer do século XX, o futebol e a sociedade estiveram entrelaçados e como se influenciaram mutuamente.
Dito isto, assumimos que muitos dos problemas enfrentados no futebol são análogos àqueles enfrentados no mundo do trabalho. E vice-versa. Em relação ao contexto do trabalho, as semelhanças entre futebol e sociedade acentuaram-se cada vez mais na proporção em que o futebol foi se profissionalizando. O recente episódio da tentativa de compra de Kaká pelo Manchester City ao AC Milan pode ser tomado como exemplo disso.
Kaká é jogador do AC Milan há mais de cinco anos, algo raro no futebol atual. Kaká mostrava-se satisfeito com seu clube e não escondia que seus objetivos de carreira tinham o Milan como único horizonte. Ele também já havia dito que pretendia assumir o cargo de capitão do time e “envelhecer” no clube que o projetou para o estrelato no futebol. Ademais, Kaká também deixou transparecer, em várias oportunidades, o desejo de seguir no clube como dirigente quando pendurar as chuteiras.
Tudo isso seguia tranquilo e inquestionável até algumas semanas atrás, quando o Manchester City ofereceu uma soma astronômica pelo passe do jogador. Uma valor quase irreal, mesmo sem considerar a atual crise econômica ou lembrar o caráter suspeito da fonte do prometido dinheiro (o que não vem ao caso). O Milan mostrou-se interessado enquanto Kaká esteve relutante. Depois de um certo imbróglio, um certo vai ou fica, a decisão: Kaká fica. Porque o Milan quer e, sobretudo, porque Kaká quer.
Esse evento me fez lembrar o tema do comprometimento com a organização, um vasto campo de pesquisa na Psicologia do Trabalho e das Organizações. É inevitável que a explicação a seguir simplifique em excesso o conceito: Meyer e Allen, são dois autores canadenses que defendem um modelo multidimensional do comprometimento, que congrega as contribuições de vários outros autores anteriores. De acordo com o modelo , há três dimensões ou bases do comprometimento: afetiva (permanece na empresa porque quer), calculativa ou de continuidade (permanece porque precisa) e normativa (permanece porque sente que deve). As diferentes bases ensejam diferentes disposições comportamentais, embora tenham em comum uma relação negativa com o turnover.
Uma das premissas do modelo é que as bases do comprometimento estão presentes ao mesmo tempo com intensidades diferentes. Um jogador, por exemplo, pode permanecer em um clube pelo "amor à camisa" (C. Afetivo), por não ter alternativas ou não querer perder aquilo que conquistou com tanto tempo de trabalho no clube – ex.: chegou a capitão – (C. Calculativo) ou ainda por nutrir um sentimento de obrigação moral para com o clube que o treinou desde criança e investiu forte em seu desenvolvimento profissional (C. Normativo).
Tudo isso pode estar presente em diferentes medidas. Este é o modelo conceitual mais aceito hoje. Entretanto, sugiro, para quem se interesse, a leitura da mais recente – e talvez mais bem fundamentada – crítica a esse modelo, presente no artigo de Solinger, Olffen & Roe (2008).
Além das diferentes bases do comprometimento uma das grandes questões é aquela referente aos seus múltiplos focos. Nós, assim como os jogadores de futebol, nos comprometemos não apenas com nossa organização, mas com nossa carreira, com nosso chefe, com nosso grupo de trabalho, com o sindicato, etc.
Muitas vezes o comprometimento com esses múltiplos focos leva o sujeito a tendências contraditórias. Não é raro que algumas pessoas deixem uma empresa de que gosta para acompanhar o seu chefe ou colega de trabalho que entraram em outra empresa. Algumas empresas podem não permitir o desenvolvimento da carreira de um profissional e, por essa razão, este pode deixá-la por outra em que terá o que espera. O vínculo com um sindicato pode implicar comportamentos não condizentes com o seu comprometimento com a empresa.
Na minha visão, a questão dos múltiplos focos está evidente no mundo do futebol já há um bom tempo. Porém, pra ser mais específico, acredito que a carreira é o principal foco do jogador de futebol, o que faz com que tome decisões que contrastem com o que seria de esperar de seu vínculo com o grupo, com seu treinador ou com seu clube. Consequentemente, devemos atentar para esse a relação do jogador com sua carreira se estivermos interessados em entender melhor seu comportamento.
Os jogadores, mais que profissionais de muitas categorias, buscam visibilidade, desafios, novidades. Podem escolher entrar num clube por este lhe dar boas chances de conquistar títulos, ou simplesmente por permitir participar de campeonatos que lhes dão maior visibilidade. Assim podem escolher ganhar menos num clube que beneficie sua carreira do que ganhar mais em outro em que apagar-se-á como profissional. Enfim, mais que o salário a ganhar, muitas vezes conta muito o valor a ser agregado à sua carreira. Ganhar muito e ficar no banco é outra opção pouco escolhida por jogadores.
Visto sob esta ótica, o clube (a organização) parece ser um mero instrumento no desenvolvimento profissional dos jogadores. Estes últimos passam a ser vistos como “mercenários” uma vez que parecem dispostos a mudar de clube por “qualquer razão”.
O caso da Juventus também é emblemático. Rebaixado pra segunda divisão do campeonato italiano e suspenso das competições européias o clube e seus torcedores assistiram a uma verdadeira diáspora de seus craques para os principais clubes europeus (inclusive rivais italianos). A derrocada da Juve é equivalente a ver a Coca-Cola transformar-se num supermercado local, pelo menos por um tempo. E, seguindo com a comparação, os jogadores da Juventus, que “dirigiam” a outrora grande Coca-Cola, preferiram mudar para as “Nike’s” e “Microsoft’s”, e seguir como importantes atores no cenário internacional.
A revolta dos torcedores da Juve e as “desculpas” formuladas pelos jogadores que deixaram o “barco” afundando são conjuntos de enunciados que representam bem o atual duelo entre o discurso de cobrança do “amor à camisa de outrora”, proferido por diretores e torcedores, e o discurso do “profissionalismo” presente na fala de jogadores e, obviamente, de seus empresários.
Uma parte bem específica do mundo do trabalho, aquela dos empregados altamente qualificados (dos chamados talentos) vive – dizem alguns – próxima a essa realidade, em que os interesses ligados à carreira se sobrepõem aos da organização. As empresas cobiçam cada vez mais esses talentos (como exemplo temos a prática de Head Hunting) enquanto estes desejam usar organizações de renome para dar saltos maiores e maiores em suas carreiras. Uma vez conquistados, como mantê-los? De que esses “novos empregados”, pra utilizar a terminologia de Grantham, precisam para ficar? Qual o papel que o comprometimento organizacional assume no novo contexto, esse mesmo referência tão importante outrora, na esteira do welfare state e do pleno emprego, em que o vínculo entre empregado e empregador pressupunha uma relação de tempo indeterminado?
Ao contrário do que alguns defendem, pra mim, o caso de Kaká mostra que o comprometimento organizacional continua a ser importante e deve ser fomentado nas organizações. Contudo, diferentemente de outros tempos, os outros vínculos ou focos de comprometimento também devem ser tidos em conta. Kaká não foi ao Manchester City porque este não lhe dava a possibilidade de conquistar títulos europeus ou de fazê-lo voltar a ser o melhor do mundo. Mas Kaká também resolveu rejeitar o Manchester City por amor ao clube e por toda a relação que construiu com sua torcida e dirigentes; porque no Milan Kaká fez investimentos, construiu a plataforma segura para conquistar seus objetivos dentro do clube(ser capitão da equipe, destacar-se internacionalmente); porque provavelmente lá ele é ouvido, considerado, reconhecido; Kaká ficou também porque sente que deve muito ao clube que deu destaque ao seu nome, que fez com que ele chegasse à seleção brasileira como principal jogador.
Neste sentido, ganhou Kaká porque manteve-se no clube que ama e que irá possibilitar grandes oportunidades à sua carreira de jogador. Ganhou o Milan enquanto organização ao manter aquele considerado sua principal vantagem competitiva. Ganhou também o futebol mais uma história que será contada e recontada futuramente, por senhores de meia-idade que, em tom professoral e nostálgico, lembrarão inocentemente aos mais novos que o futebol já não é mais como nos idos de 2009.
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9/2/2009 - Commentário Sem Título
Postado por Juliana Seidl
Excelente forma de explicar as três dimensões do comprometimento, Diogo! Parabéns pelo blog. Abraços, Juliana Seidl (aluna do mestrado WOP-P 2008-2010 =).
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9/2/2009 - Kaka
Postado por Rafael
Olá Diogo!! Parabéns pela matéria, referente ao caso do Kaka. Acompanhei por cima a tentativa de transição, pois era um fato evidente nos jornais e páginas da web. No entanto, não tinha me dado conta de quantas coisas estevam agundo por trás e que o estopim era ir ou não para o novo clube. Sua matéria me fez refletir bastante. Abraço!!
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9/2/2009 - Commentário Sem Título
Postado por diogo
Obrigado pelos comentários. Fico feliz que o texto tenha gerado reflexões, Rafael. Abçs
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12/2/2009 - Commentário Sem Título
Postado por Joel
Beleza. Não muito tempo atrás, a Fiorentina foi rebaixada pelo critério técnico. Batistuta sua maior estrela e titular absoluto da seleção Argentina à epoca foi assediado por vários clubes do mundo e principalmente da Itália. O que ele disse? "Não aceito nenhum outro clube e vou dis****r a segundona com ela. Também sou responsável pela sua queda". Foi lá e um ano após a Fio voltava à primeira divisão. Lo hermano também tem dignidade. Deus ainda acredita nos homens ( acredito que não em todos). Joel
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1/3/2009 - commitment e retenção de talentos
Postado por Helena Martins
Di-Man, acho que uma questão importante em toda esta história não deixa de ser também a política de retenção de talentos... Há vários clubes (e empresas!) que apesar de todo o blá blá blá continuam a achar que gerir RH é dar dinheiro e ponto final. Fazem processos de head hunting onde gastam fortunas e depois esquecem-se de reter os seus talentos que até podem ficar presos por um tempo por um certo compromisso de continuidade, mas que aos poucos vão baixando a satisfação com o emprego (numa ou várias dimensões) e isso enfraquece, queiramos ou não, o compromisso afectivo e, em alguns casos o próprio compromisso normativo. Trabalhando em consultoria, o mais normal é ouvir o cliente (a empresa) a dizer o que espera dos funcionários com grande ênfase: motivação, amor à camisola, lealdade, empenho, iniciativa, etc... Mas nunca tem bem claro ou explícito o que é que está disposta a dar em troca, como se fosse obrigação do colaborador esta devoção "à chinesa", de querer viver para sempre na empresa, a troco daquilo que ao empregador lhe parecer mais justo... até à altura em que este acha que já não precisa daquela pessoa... Custa-me especialmente perceber uma certa tendência das empresas em obter o melhor talento, apenas para depois o tomar por garantido... Resta-me pensar que, como diziam o Meyer e a Allen num artigo "the problem with talented employees is that they have options" certo? O mundo está mesmo a mudar... E os contratos psicológicos e o compromisso organizacional também!
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21/3/2009 - Commentário Sem Título
Postado por Juliana
Galêgo, desculpa só agora voltar a ler o seu blog. O interessante é que não é um assunto que normalmente me interessa (futebol), mas você constrói o texto de uma forma que atrai o mais leigo dos leitores até o fim. E me fez refletir também, logo eu, que tanto mudei de empresas... rsrsrsrs. Parabéns! Beijos!
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Um comentário:
Se você tem Smart TV esse é o site www.tvhd.com.br
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