Desde criança Nelsinho sonhou em trabalhar para uma grande organização da qual seu pai é um dos símbolos. Entrar nesse mundo significaria continuar a fazer parte do meio onde cresceu, mas agora como protagonista. Queria ser como seu pai, um reconhecido talento na tal organização.
Desde muito cedo ele cultivou seu sonho e acreditou, como muitos outros, que esse sonho deveria ser perseguido a despeito de quaisquer obstáculos. Absorveu que a determinação e a perseverança são características marcantes daqueles que se sobressaíram (tal como seu pai). Aprendeu que quando a meta é alcançada o afago sempre vem, independente da forma como isso tenha sido feito. Viu, com seus próprios olhos, que a linha entre o certo e o errado é muito tênue nesse mundo e que o resultado alcançado, em geral, determina o lado para o qual a linha pende.
Há poucos meses o mundo, estupefato, assistia o desenrolar do caso Nelsinho Piquet. Curiosos, comentaristas, repórteres e “celebridades” opinavam sobre o assunto. As opiniões eram as mais diversas. O que havia de comum era um certo ar de indignação e surpresa nos discursos.
Se realizarmos uma análise mais aprofundada da história da Fórmula Um, vemos que não há elementos suficientes para justificar tamanha surpresa. Ora, a trama em que Nelsinho esteve envolvido é apenas o mais recente dos inúmeros enredos onde pilotos e dirigentes de Fórmula Um “jogaram sujo” para alcançar seus objetivos.
Ao que me parece, na Fórmula Um é comum que alguns princípios éticos – os quais, pelo menos em tese, regem muitos esportes, sejam violados. Na maior parte dos casos, ferir a ética pode ser um efeito colateral de pouca significância quando se consegue o que todos valorizam: a vitória, o resultado.
A cultura Fórmula Um, e do esporte de alto rendimento em geral, é a cultura do resultado e da competição a qualquer custo. São valorizados, essencialmente, o resultado alcançado, o desempenho excelente. Como se chega lá não é algo tão importante assim. Desde que...se chegue.
Toda cultura tem heróis. Eles são ícones/símbolos e encarnam aquilo que as pessoas de uma organização valorizam. Steve Jobs é modelo de liderança e competência pra Apple, Bill Gates o é para a Microsoft. As “estórias” sobre os heróis que são contadas e recontadas, na Fórmula Um como em qualquer organização, ajudam a construir a identidade do grupo e a deixar mais claro para seus membros o que é aceito e valorizado bem como aquilo que é rechaçado.
Voltando à Fómula Um...conta-se que Ayrton Senna era a determinação em pessoa. Um homem que, acima de tudo, buscava a perfeição técnica incessantemente. Conta-se que quando ainda andava de Kart ele correu num dia de chuva e seu desempenho foi péssimo. Rodou várias vezes e seu tempo era muito ruim. Desde esse dia, Senna treinava em seu kart sempre que chovia durante horas e horas. Essa determinação, que em outros meios poderia ser visto sob o colorido negativo de perfeccionismo e workaholism, levou-o a ser bom na chuva e, consequentemente, ajudou-o a ser um dos ícones desse grupo. A estória, mais que relatar um fato “glorioso”, estabelece uma “norma”, instaura um “modelo” que servirá de referência aos que aspiram a campeão.
É bem verdade que o mesmo talentoso e determinado Senna, em 1988, bateu intencionalmente no carro de Alain Prost e, dessa forma, garantiu o título do campeonato daquele ano. No ano Seguinte o francês deu o troco e ficou com o título. Em 1994, Michael Schumacher, maior vencedor da história da fórmula 1, tirou o inglês Damon Hill da disputa do campeonato ao empurrá-lo propositadamente pra fora da pista numa curva (vale lembrar que o alemão era dirigido pelo tal Briattore, atual bode expiatório da F1). O mesmo Schumacher em 97 tentou fazer o mesmo com Villeneuve na disputa pelo título, mas sem sucesso. Nos anos de ouro da Ferrari o “espírito de equipe” falou alto (de modo assaz conveniente) e Barrichelo teve de deixar seu companheiro passar e vencer a corrida. Em 2007, Fernando Alonso fez com que seu companheiro de equipe, Lewis Hamilton, tivesse seu pit stop atrasado. Recentemente a McLaren foi acusada de praticar espionagem e copiar os segredos da Ferrari. Em 2008, o dirigente da Renault ordenou que Nelsinho provocasse um acidente para favorecer o outro piloto de sua equipe.
Esses são apenas alguns dos eventos envolvendo grandes campeões (pilotos e dirigentes) da categoria, símbolos que servem de exemplo para os pilotos aspirantes. Somem-se a esses, inúmeros pequenos acontecimentos que deveriam nos fazer questionar se tais eventos são desvio ou se configuram a norma tacitamente aceita.
Na Fórmula Um toda a estrutura está desenhada não apenas para permitir mas, além disso, encorajar acontecimentos desse tipo.
As equipes são, em geral, divididas em dois times, cada um responsável pelo desempenho do carro de um dos pilotos. Assim, a lógica vigente da competição a qualquer preço entre as equipes estende-se à dinâmica intra-equipe.
Os pilotos são moldados ao longo de suas carreiras para adequar-se à idéia construída acerca de como deve ser um piloto de sucesso e, consequentemente, são avaliados em função da compatibilidade com o modelo criado. Para ingressar na F-1 seus resultados em outras categorias de automobilismo falam mais alto que qualquer outro critério, inclusos aí quaisquer critérios com referência a princípios éticos.
Algo semelhante acontece com os dirigentes das equipes. Estes são figuras emblemáticas, reconhecidamente azedas, impessoais. Algo esperado para quem foi selecionado exclusivamente pelos resultados que obteve e que precisa seguir com os resultados para manter-se no cargo. Logo, a coação, intimidação e o assédio a seus funcionários – aspectos que transpareceram no caso Nelsinho – não são encarados como absurdos, mas instrumentos de gestão até certo ponto aceitáveis dentro de determinados contextos. De alguma forma os dirigentes de equipes haverão de fazer a roda da Fórmula Um girar e para isso tudo vale.
É bastante confortável para os atores envolvidos (pilotos, dirigentes, diretores, imprensa e público) atribuir a responsabilidade pelo que acontece de “ruim” na Fórmula Um a “alguns poucos dirigentes gananciosos” e outros “nem tantos pilotos de caráter duvidoso” . Dessa forma, aparentamos encontrar a solução para o problema e alimentamos a idéia de que os princípios éticos da "Fórmula Um de outrora” foram “restaurados”.
Ao mesmo tempo em que são peças fundamentais para a manutenção engrenagem cruel que sustenta esse esporte, os dirigentes de equipes e pilotos por vezes são feitos de bodes expiatórios quando a situação convém. É a velha lógica de atribuir o “mal” funcionamento de um sistema doentio a algumas “maçãs podres”, fomentando no público a ilusão de que ao extirpá-las, o “bom” funcionamento do sistema será restaurado.
No ambiente criado e sustentado pelos integrantes do circo da Fórmula Um (pilotos, dirigentes, imprensa) tudo o que veio à tona no caso Nelsinho de forma mais intensa acontece em maior ou menor grau no dia-a-dia das equipes. A lógica cruel do desempenho a qualquer custo está impregnada na hierarquia das equipes, na configuração das relações de trabalho e nas relações interpessoais, na forma como acidentes foram e são tratados, nas anedotas e histórias contadas e recontadas diariamente, etc.
Isso porque, apesar da narrativa oficial em contrário, os valores centrais da Fórmula Um não são aqueles implícitos nas máximas esportivas segundo as quais “o importante é competir” ou “que vença o mais rápido”. O chamado Fair play nesse esporte é algo até desejável e, sim, faz parte do discurso oficial. Mas se não der pra conseguir...bem, existem coisas mais importantes/urgentes...
A Fórmula Um, por ser objeto de atenção e escrutínio do grande público, mostra de forma mais acentuada uma dinâmica doentia das relações de trabalho onde princípios éticos são relativizados. Contudo, ela é uma ilustração exemplar daquilo que de fato está em vigor no mundo corporativo atual. Basta assistir a algumas palestras motivacionais, ler algumas revistas da área e até assistir alguns filmes (ex.: "O diabo veste Prada").
Interessante nomear a organização Fórmula Um de circo: “o circo da Fórmula Um chegou a Interlagos”. No circo tudo pode acontecer e o show tem que continuar...
Desde muito cedo ele cultivou seu sonho e acreditou, como muitos outros, que esse sonho deveria ser perseguido a despeito de quaisquer obstáculos. Absorveu que a determinação e a perseverança são características marcantes daqueles que se sobressaíram (tal como seu pai). Aprendeu que quando a meta é alcançada o afago sempre vem, independente da forma como isso tenha sido feito. Viu, com seus próprios olhos, que a linha entre o certo e o errado é muito tênue nesse mundo e que o resultado alcançado, em geral, determina o lado para o qual a linha pende.
Há poucos meses o mundo, estupefato, assistia o desenrolar do caso Nelsinho Piquet. Curiosos, comentaristas, repórteres e “celebridades” opinavam sobre o assunto. As opiniões eram as mais diversas. O que havia de comum era um certo ar de indignação e surpresa nos discursos.
Se realizarmos uma análise mais aprofundada da história da Fórmula Um, vemos que não há elementos suficientes para justificar tamanha surpresa. Ora, a trama em que Nelsinho esteve envolvido é apenas o mais recente dos inúmeros enredos onde pilotos e dirigentes de Fórmula Um “jogaram sujo” para alcançar seus objetivos.
Ao que me parece, na Fórmula Um é comum que alguns princípios éticos – os quais, pelo menos em tese, regem muitos esportes, sejam violados. Na maior parte dos casos, ferir a ética pode ser um efeito colateral de pouca significância quando se consegue o que todos valorizam: a vitória, o resultado.
A cultura Fórmula Um, e do esporte de alto rendimento em geral, é a cultura do resultado e da competição a qualquer custo. São valorizados, essencialmente, o resultado alcançado, o desempenho excelente. Como se chega lá não é algo tão importante assim. Desde que...se chegue.
Toda cultura tem heróis. Eles são ícones/símbolos e encarnam aquilo que as pessoas de uma organização valorizam. Steve Jobs é modelo de liderança e competência pra Apple, Bill Gates o é para a Microsoft. As “estórias” sobre os heróis que são contadas e recontadas, na Fórmula Um como em qualquer organização, ajudam a construir a identidade do grupo e a deixar mais claro para seus membros o que é aceito e valorizado bem como aquilo que é rechaçado.
Voltando à Fómula Um...conta-se que Ayrton Senna era a determinação em pessoa. Um homem que, acima de tudo, buscava a perfeição técnica incessantemente. Conta-se que quando ainda andava de Kart ele correu num dia de chuva e seu desempenho foi péssimo. Rodou várias vezes e seu tempo era muito ruim. Desde esse dia, Senna treinava em seu kart sempre que chovia durante horas e horas. Essa determinação, que em outros meios poderia ser visto sob o colorido negativo de perfeccionismo e workaholism, levou-o a ser bom na chuva e, consequentemente, ajudou-o a ser um dos ícones desse grupo. A estória, mais que relatar um fato “glorioso”, estabelece uma “norma”, instaura um “modelo” que servirá de referência aos que aspiram a campeão.
É bem verdade que o mesmo talentoso e determinado Senna, em 1988, bateu intencionalmente no carro de Alain Prost e, dessa forma, garantiu o título do campeonato daquele ano. No ano Seguinte o francês deu o troco e ficou com o título. Em 1994, Michael Schumacher, maior vencedor da história da fórmula 1, tirou o inglês Damon Hill da disputa do campeonato ao empurrá-lo propositadamente pra fora da pista numa curva (vale lembrar que o alemão era dirigido pelo tal Briattore, atual bode expiatório da F1). O mesmo Schumacher em 97 tentou fazer o mesmo com Villeneuve na disputa pelo título, mas sem sucesso. Nos anos de ouro da Ferrari o “espírito de equipe” falou alto (de modo assaz conveniente) e Barrichelo teve de deixar seu companheiro passar e vencer a corrida. Em 2007, Fernando Alonso fez com que seu companheiro de equipe, Lewis Hamilton, tivesse seu pit stop atrasado. Recentemente a McLaren foi acusada de praticar espionagem e copiar os segredos da Ferrari. Em 2008, o dirigente da Renault ordenou que Nelsinho provocasse um acidente para favorecer o outro piloto de sua equipe.
Esses são apenas alguns dos eventos envolvendo grandes campeões (pilotos e dirigentes) da categoria, símbolos que servem de exemplo para os pilotos aspirantes. Somem-se a esses, inúmeros pequenos acontecimentos que deveriam nos fazer questionar se tais eventos são desvio ou se configuram a norma tacitamente aceita.
Na Fórmula Um toda a estrutura está desenhada não apenas para permitir mas, além disso, encorajar acontecimentos desse tipo.
As equipes são, em geral, divididas em dois times, cada um responsável pelo desempenho do carro de um dos pilotos. Assim, a lógica vigente da competição a qualquer preço entre as equipes estende-se à dinâmica intra-equipe.
Os pilotos são moldados ao longo de suas carreiras para adequar-se à idéia construída acerca de como deve ser um piloto de sucesso e, consequentemente, são avaliados em função da compatibilidade com o modelo criado. Para ingressar na F-1 seus resultados em outras categorias de automobilismo falam mais alto que qualquer outro critério, inclusos aí quaisquer critérios com referência a princípios éticos.
Algo semelhante acontece com os dirigentes das equipes. Estes são figuras emblemáticas, reconhecidamente azedas, impessoais. Algo esperado para quem foi selecionado exclusivamente pelos resultados que obteve e que precisa seguir com os resultados para manter-se no cargo. Logo, a coação, intimidação e o assédio a seus funcionários – aspectos que transpareceram no caso Nelsinho – não são encarados como absurdos, mas instrumentos de gestão até certo ponto aceitáveis dentro de determinados contextos. De alguma forma os dirigentes de equipes haverão de fazer a roda da Fórmula Um girar e para isso tudo vale.
É bastante confortável para os atores envolvidos (pilotos, dirigentes, diretores, imprensa e público) atribuir a responsabilidade pelo que acontece de “ruim” na Fórmula Um a “alguns poucos dirigentes gananciosos” e outros “nem tantos pilotos de caráter duvidoso” . Dessa forma, aparentamos encontrar a solução para o problema e alimentamos a idéia de que os princípios éticos da "Fórmula Um de outrora” foram “restaurados”.
Ao mesmo tempo em que são peças fundamentais para a manutenção engrenagem cruel que sustenta esse esporte, os dirigentes de equipes e pilotos por vezes são feitos de bodes expiatórios quando a situação convém. É a velha lógica de atribuir o “mal” funcionamento de um sistema doentio a algumas “maçãs podres”, fomentando no público a ilusão de que ao extirpá-las, o “bom” funcionamento do sistema será restaurado.
No ambiente criado e sustentado pelos integrantes do circo da Fórmula Um (pilotos, dirigentes, imprensa) tudo o que veio à tona no caso Nelsinho de forma mais intensa acontece em maior ou menor grau no dia-a-dia das equipes. A lógica cruel do desempenho a qualquer custo está impregnada na hierarquia das equipes, na configuração das relações de trabalho e nas relações interpessoais, na forma como acidentes foram e são tratados, nas anedotas e histórias contadas e recontadas diariamente, etc.
Isso porque, apesar da narrativa oficial em contrário, os valores centrais da Fórmula Um não são aqueles implícitos nas máximas esportivas segundo as quais “o importante é competir” ou “que vença o mais rápido”. O chamado Fair play nesse esporte é algo até desejável e, sim, faz parte do discurso oficial. Mas se não der pra conseguir...bem, existem coisas mais importantes/urgentes...
A Fórmula Um, por ser objeto de atenção e escrutínio do grande público, mostra de forma mais acentuada uma dinâmica doentia das relações de trabalho onde princípios éticos são relativizados. Contudo, ela é uma ilustração exemplar daquilo que de fato está em vigor no mundo corporativo atual. Basta assistir a algumas palestras motivacionais, ler algumas revistas da área e até assistir alguns filmes (ex.: "O diabo veste Prada").
Interessante nomear a organização Fórmula Um de circo: “o circo da Fórmula Um chegou a Interlagos”. No circo tudo pode acontecer e o show tem que continuar...
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