Percepção de risco é um tópico muito abordado na Segurança do Trabalho. Uma rápida busca no Google nos remete a uma diversidade de artigos, blogs, sites de consultorias, slides de treinamento, etc. Trata-se de uma noção fundamental mas que sofre de um mal comum a muitas outras; seu emprego generalizado e indevido.
Percepção de risco é o ato de avaliar as probabilidades de que algum perigo venha a se manifestar concretamente, e estimar a magnitude dos efeitos de um evento provável. É importante entender que o conceito é de natureza secundária, pois trata-se de aplicar conceitos primários (como a percepção e probabilidade subjetiva) ao tema da segurança.
Suponha que alguém esteja numa festa e verifica um copo de vidro cheio à beira de um balcão por onde muitas pessoas passam. Os elementos da realidade estão presentes: o copo, as pessoas, o balcão, etc. A partir dessas informações o sujeito pode avaliar a possibilidade de que alguém derrube o copo no chão. Para avaliar essa possibilidade ele se serve da análise de outros elementos que não são auto-evidentes, mas exigem algo para além da mera identificação do copo, por exemplo. Ele avalia que a área de circulação é relativamente estreita; que a distância a que as pessoas passam pelo copo é pequena; que as pessoas, em geral, não estão atentas ao copo da mesma forma que ele. Julga ainda que, dada a altura do balcão, o copo certamente quebrará ao bater o chão e que isso poderá ferir os transeuntes.
Em resumo, o sujeito entrou em contato com os elementos da realidade e construiu uma idéia acerca da probabilidade de que algo de negativo aconteça. Em outras palavras, ele identificou um risco em sua exata magnitude. Para chegar a isso ele se apoiou em seus órgãos sensoriais, em funções cognitivas, nos conhecimentos elementares da física, etc. Tudo isso sob o pano de fundo de sua experiência prévia, que o ajudou a compreender os fenômenos da realidade e identificar as relações de causa e efeito que nela se expressam.
Infelizmente,o conceito de percepção de risco nem sempre pára por aí, pelo menos em minha pequena experiência de trabalho ou nas pesquisas na web sobre o assunto. Muitas vezes ele "inclui" indevidamente a idéia de comportamento inseguro. Isso ocorre principalmente quando se recorre ao conceito para explicar acidentes. Isso se faz, muito amiúde, com base numa espécie de fusão entre a percepção do risco e o ato dirigido à sua mitigação. Neste ponto está implícita a falsa suposição de uma relação automática e necessária entre ambos.
Explicando melhor: já ouvi que a maior parte dos acidentes é causado por falta de percepção de risco. Um colega "mais informado" ousou um pouco mais e chegou a fornecer uma porcentagem: 95%. Olhando para esse número eu tenho praticamente certeza de que não estou diante de um dado da realidade, mas do efeito perverso de um problema de raciocínio. Um dado como esse só pode ser obtido da seguinte maneira: você interpreta praticamente todo e qualquer ato inseguro ou má decisão que resultou em acidente como falta ou falha na percepção de risco. E chamar a má decisão de falta de percepção de risco é uma espécie de metonímia, pois designa-se o efeito por sua (suposta) causa. Ou seja, quando se utiliza uma má decisão ou ato inseguro como elemento necessário para avaliar a percepção de risco você foi além do próprio conceito. A relação entre a identificação do risco e a conduta ou decisão do sujeito é "contingencial" e não necessária.
Dizer que a percepção de risco é premissa básica para um comportamento seguro é uma coisa. Ninguém discute o óbvio. Mas dizer, por uma espécie de lógica inversa, que comportamentos inseguros e más decisões são resultados inequívocos da falta de percepção de risco é um automatismo ingênuo. E essa lógica é empregada com mais frequência do que deveria. Afinal, de que outra forma chegaríamos à estatística oficiosa do colega segundo a qual a falta de percepção de risco “causa 95% dos acidentes”.
Cabe agora esclarecer o que é a suposição de uma relação automática entre percepção e ato, pressuposto básico que leva indivíduos a fundir as duas coisas no conceito de percepção de risco: é a idéia de que ao perceber um risco o sujeito necessariamente age para mitigá-lo - por exemplo, o sujeito de nosso exemplo, por alguma força implacável da natureza, removeria o copo imediatamente ao perceber o risco que a situação oferecia. Neste ponto fica ainda mais claro o absurdo do raciocínio por inversão, pois o fato de o sujeito não remover o copo não é necessariamente um indicativo de que ele não percebeu o risco, ou que não avaliou corretamente sua magnitude.
Ademais, assumir esse automatismo só faz sentido se imaginarmos também que tudo o que existe na cabeça do sujeito naquele momento é a sua percepção de que o copo pode ser derrubado. Nada mais lhe interessa. Mas entre a percepção deste fato e a decisão de remover ou não o copo pode haver muita coisa envolvida. O sujeito pode estar ocupado numa conversa amorosa ou de negócios; pode ter decidido que remover o copo não era sua responsabilidade, de que não é problema dele que outros se machuquem; pode ter julgado que mexer no copo de uma outra pessoa fosse algo grosseiro. As possibilidades que explicam a sua decisão por não mitigar o risco são muitas e todas podem conviver pacificamente com o fato de que o risco foi precisamente identificado e avaliado. Este ponto é fundamental.
Pense em sua vida cotidiana e tente identificar situações em que você, mesmo percebendo certos riscos, agiu de modo que a probabilidade de que ele se manifestasse se mantivesse intacta. Quantas vezes você já atravessou o sinal amarelo, ou mesmo vermelho? Quantas vezes você acelerou a 100km/h em estradas desconhecidas, sem saber se havia animais ou buracos? Quantas vezes você apostou seu dinheiro em ações de empresas que você desconhece, seguindo apenas as orientações de seu consultor? Quantas vezes você bebeu um copo a mais e voltou para casa dirigindo? No futebol, você alguma vez entrou em divididas fortes?
Agora tente lembrar se você agiu assim porque "não tinha a noção exata do risco de fazê-lo". Aqui entramos na questão da falta de percepção de riscos como categoria preferencial para explicação de acidentes. Ou seja, nos tais 95% citados pelo "estatístico" acima referido. Se você bateu o carro, foi porque você não sabia exatamente o risco de atravessar aquele sinal vermelho? Se machucou a perna na dividida foi porque não tinha idéia da probabilidade disso acontecer? Para quem funde percepção e ato numa mesma categoria e assume que se o risco não foi evitado é porque não foi identificado, a resposta é sim. É um simplismo que ofusca a verdadeira compreensão dos acontecimentos.
Com razoável freqüência estamos assumindo riscos e agindo no sentido (até mesmo) inverso ao de sua mitigação. No trabalho isso também acontece. Idealmente, não deveria, claro. É óbvio que há situações em que o sujeito toma decisões erradas porque não avaliou adequadamente os riscos envolvidos. Contudo, em grande parte das ocasiões "jogamos" com as probabilidades visando alcançar determinados objetivos. Às vezes optamos por realizar atalhos no trabalho. Outras vezes resolvemos ser mais criteriosos e, obviamente, mais demorados. A noção do princípio ETTO (Efficiency-Thoroughness-Trade-Off) de Hollnagel ajuda a explicar como jogamos com as diferentes demandas do trabalho.
Há ainda uma outra questão muito importante para entender porque se recorre tanto ao conceito para explicar coisas que deram errado. Ela consiste no hábito de se interpretar as ações do sujeito envolvido no acidente com os critérios da situação posterior ao acidente. Esclarecendo: existe uma discrepância aguda entre a situação do sujeito envolvido num determinado acidente e o sujeito que o investiga a posteriori. Basta dizer que no momento anterior ao acidente tudo o que se pode conceber são probabilidades; umas mais fortes outras nem tanto. No momento posterior ao acidente o que existe é uma relação linear de causa e efeito que se expressou concretamente na realidade. Então no primeiro momento as relações são possíveis/prováveis enquanto no segundo as relações não são apenas certas mas necessárias; afinal, o fato ocorreu "assim e assado". Ao avaliar as ações do sujeito envolvido no acidente e tentar comprrendê-las é necessário, portanto, remontar à sua situação concreta: a de um ambiente de probabilidades subjetivas e não tomar como ponto de partida e referência o ambiente de relações estabelecidas ex post facto, que é propriamente o momento da investigação. Nós, seres humanos, jogamos conscientemente com probabilidades e não com fatos acontecidos. Se aquele que investiga não atentar para a diferença entre os dois momentos ele pensará: “mas é certo que ele não tinha idéia do perigo se o resultado era tão óbvio!”. E assim, confundindo o que é óbvio com o que era apenas provável (na cabeça do sujeito) ele não entende como alguém poderia "jogar" com o óbvio. E precisamente nesse ponto a falta de percepção de risco aparecerá como explicação preferencial.
A explicitação dessas questões refere-se simplesmente ao uso cotidiano e "rasteiro" da noção de percepção de risco e em nada diminui a importância de estudar esse tema. Continua a ser importante compreender como as pessoas interpretam e integram os diversos elementos da realidade e formam idéias sobre o que pode ou não acontecer. Nesse âmbito, o conhecimento dos processos é fundamental. É necessário entender a influência de fatores como a experiência, o conhecimento técnico, o estado afetivo, os valores individuais acerca da segurança, bem como outros muitos aspectos do contexto laboral sobre a percepção de risco. Continua a ser importante entender o que faz com que pessoas façam estimativas diferentes acerca dos riscos oferecidos numa mesma situação, qual o papel das heurísticas e, ademais, como o mesmo risco parece ser mais aceitável para uns que para outros. Esses aspectos devem, certamente, ser explorados de modo identificar a probabilidade de ocorrência de atos inseguros e, consequentemente, garantir melhores resultados em sua prevenção. Enfim, percepção de risco é um assunto muito rico. Importa, contudo, separar o trigo do joio e não permitir que o uso desse conceito seja acompanhado de idéias ingênuas sobre a ação humana.
4 comentários:
Muito interessante e bem escrito, este artigo me fez pensar.
Recentemente surgiu uma discussão na empresa em que trabalho sobre "avaliação de perfis de risco", ou seja, uma tentativa generalizada de identificar perfis desde a seleção de pessoal que tivessem maior probabilidade de se envolver em acidentes na empresa. À primeira vista, parece uma ação preventiva - como aliás pareceu a mim inicialmente. Mas agora questiono a ênfase nesse aspecto porque ele faz recair sobre o sujeito "95%" da responsabilidade pelo seu comportamento, fechando os olhos para fatores contextuais, pressões grupais, segurança dos próprios equipamentos. É possível que impulsividade, por exemplo, esteja relacionada a incidentes com operação que requer controle motor fino, muita atenção e interação com ações de outros operadores? Provavelmente sim. Mas, e outros fatores como conflitos na equipe, situação familiar, condição física, e muitos outros? Precisaríamos inclui-los na avaliação (embora não saiba como!).
Caro André, obrigado. A tentativa de identificar perfis de risco é uma linha de trabalho bem antiga. Busque na web com o termo "accident-prone". Há muitos artigos sobre a idéia de que determinados sujeitos são mais propensos a sofrer acidentes que outros. Há também muitas críticas a isso. Acredito (e aí é chute mesmo) que o fato de identificarmos, numa determinada amostra, uma parcela de pessoas que se envolveram com maior frequência em acidentes não quer dizer que, necessariamente, exista alguma característica pessoal que explique totalmente esse dado. Numa das críticas à linha de Accident-proneness, um autor cujo nome não lembro demonstrou que essas distribuições de acidentes em geral conferem com qualquer distribuição aleatória. Ou seja, que é esperado que, ao acaso, algumas pessoas se acidentem mais que as outras e que, analogamente, determinados corretores de ações acertem muito mais que outros. Dizer que isso significa que "há algo neles" que explica os fatos, aí é outra história. Dentro do que você disse, eu creio que a identificação de perfis de risco padece do mesmo problema que a seleção de pessoal em geral: o pressuposto de que o desempenho (no caso dos perfis, a propensão a acidentar-se) é função exclusiva de determinados atributos individuais. E isso não é verdade, embora seja muito importante identificar atributos individuais.
Sou Everaldo Marcelo, Eng de Seg do Trabalho, e estou escrevendo um Artigo para uma Revista, com o tema Cultura de Segurança do Trabalho: Uma abordagem Interdisciplinar, onde faço uma relação entre a Cultura de Segurança e a Percepção de Riscos.
Gostaria que vc apreciasse o Artigo e tecesse alguns comentários, e quem sabe abririamos uma discussão a respeito, via Blog.
Caso aceite, posso encaminhá-lo via e-mail ( favor encaminhar o endereço eletrônico).
Abçs
Desculpe Everaldo. Passei um bom tempo sem acessar o blog. Espero que
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