terça-feira, 29 de maio de 2012

Percepção de Risco

Percepção de risco é um tópico muito abordado na Segurança do Trabalho. Uma rápida busca no Google nos remete a uma diversidade de artigos, blogs, sites de consultorias, slides de treinamento, etc. Trata-se de uma noção fundamental mas que sofre de um mal comum a muitas outras; seu emprego generalizado e indevido.

Percepção de risco é o ato de avaliar as probabilidades de que algum perigo venha a se manifestar concretamente, e estimar a magnitude dos efeitos de um evento provável. É importante entender que o conceito é de natureza secundária, pois trata-se de aplicar conceitos primários (como a percepção e probabilidade subjetiva) ao tema da segurança.

Suponha que alguém esteja numa festa e verifica um copo de vidro cheio à beira de um balcão por onde muitas pessoas passam. Os elementos da realidade estão presentes: o copo, as pessoas, o balcão, etc. A partir dessas informações o sujeito pode avaliar a possibilidade de que alguém derrube o copo no chão. Para avaliar essa possibilidade ele se serve da análise de outros elementos que não são auto-evidentes, mas exigem algo para além da mera identificação do copo, por exemplo. Ele avalia que a área de circulação é relativamente estreita; que a distância a que as pessoas passam pelo copo é pequena; que as pessoas, em geral, não estão atentas ao copo da mesma forma que ele. Julga ainda que, dada a altura do balcão, o copo certamente quebrará ao bater o chão e que isso poderá ferir os transeuntes.

Em resumo, o sujeito entrou em contato com os elementos da realidade e construiu uma idéia acerca da probabilidade de que algo de negativo aconteça. Em outras palavras, ele identificou um risco em sua exata magnitude. Para chegar a isso ele se apoiou em seus órgãos sensoriais, em funções cognitivas, nos conhecimentos elementares da física, etc. Tudo isso sob o pano de fundo de sua experiência prévia, que o ajudou a compreender os fenômenos da realidade e identificar as relações de causa e efeito que nela se expressam.

Infelizmente,o conceito de percepção de risco nem sempre pára por aí, pelo menos em minha pequena experiência de trabalho ou nas pesquisas na web sobre o assunto. Muitas vezes ele "inclui" indevidamente a idéia de comportamento inseguro. Isso ocorre principalmente quando se recorre ao conceito para explicar acidentes. Isso se faz, muito amiúde, com base numa espécie de fusão entre a percepção do risco e o ato dirigido à sua mitigação. Neste ponto está implícita a falsa suposição de uma relação automática e necessária entre ambos.

Explicando melhor: já ouvi que a maior parte dos acidentes é causado por falta de percepção de risco. Um colega "mais informado" ousou um pouco mais e chegou a fornecer uma porcentagem: 95%. Olhando para esse número eu tenho praticamente certeza de que não estou diante de um dado da realidade, mas do efeito perverso de um problema de raciocínio. Um dado como esse só pode ser obtido da seguinte maneira: você interpreta praticamente todo e qualquer ato inseguro ou má decisão que resultou em acidente como falta ou falha na percepção de risco. E chamar a má decisão de falta de percepção de risco é uma espécie de metonímia, pois designa-se o efeito por sua (suposta) causa. Ou seja, quando se utiliza uma má decisão ou ato inseguro como elemento necessário para avaliar a percepção de risco você foi além do próprio conceito. A relação entre a identificação do risco e a conduta ou decisão do sujeito é "contingencial" e não necessária.

Dizer que a percepção de risco é premissa básica para um comportamento seguro é uma coisa. Ninguém discute o óbvio. Mas dizer, por uma espécie de lógica inversa, que comportamentos inseguros e más decisões são resultados inequívocos da falta de percepção de risco é um automatismo ingênuo. E essa lógica é empregada com mais frequência do que deveria. Afinal, de que outra forma chegaríamos à estatística oficiosa do colega segundo a qual a falta de percepção de risco “causa 95% dos acidentes”.

Cabe agora esclarecer o que é a suposição de uma relação automática entre percepção e ato, pressuposto básico que leva indivíduos a fundir as duas coisas no conceito de percepção de risco: é a idéia de que ao perceber um risco o sujeito necessariamente age para mitigá-lo - por exemplo, o sujeito de nosso exemplo, por alguma força implacável da natureza, removeria o copo imediatamente ao perceber o risco que a situação oferecia. Neste ponto fica ainda mais claro o absurdo do raciocínio por inversão, pois o fato de o sujeito não remover o copo não é necessariamente um indicativo de que ele não percebeu o risco, ou que não avaliou corretamente sua magnitude.

Ademais, assumir esse automatismo só faz sentido se imaginarmos também que tudo o que existe na cabeça do sujeito naquele momento é a sua percepção de que o copo pode ser derrubado. Nada mais lhe interessa. Mas entre a percepção deste fato e a decisão de remover ou não o copo pode haver muita coisa envolvida. O sujeito pode estar ocupado numa conversa amorosa ou de negócios; pode ter decidido que remover o copo não era sua responsabilidade, de que não é problema dele que outros se machuquem; pode ter julgado que mexer no copo de uma outra pessoa fosse algo grosseiro. As possibilidades que explicam a sua decisão por não mitigar o risco são muitas e todas podem conviver pacificamente com o fato de que o risco foi precisamente identificado e avaliado. Este ponto é fundamental.

Pense em sua vida cotidiana e tente identificar situações em que você, mesmo percebendo certos riscos, agiu de modo que a probabilidade de que ele se manifestasse se mantivesse intacta. Quantas vezes você já atravessou o sinal amarelo, ou mesmo vermelho? Quantas vezes você acelerou a 100km/h em estradas desconhecidas, sem saber se havia animais ou buracos? Quantas vezes você apostou seu dinheiro em ações de empresas que você desconhece, seguindo apenas as orientações de seu consultor? Quantas vezes você bebeu um copo a mais e voltou para casa dirigindo? No futebol, você alguma vez entrou em divididas fortes?

Agora tente lembrar se você agiu assim porque "não tinha a noção exata do risco de fazê-lo". Aqui entramos na questão da falta de percepção de riscos como categoria preferencial para explicação de acidentes. Ou seja, nos tais 95% citados pelo "estatístico" acima referido. Se você bateu o carro, foi porque você não sabia exatamente o risco de atravessar aquele sinal vermelho? Se machucou a perna na dividida foi porque não tinha idéia da probabilidade disso acontecer? Para quem funde percepção e ato numa mesma categoria e assume que se o risco não foi evitado é porque não foi identificado, a resposta é sim. É um simplismo que ofusca a verdadeira compreensão dos acontecimentos.

Com razoável freqüência estamos assumindo riscos e agindo no sentido (até mesmo) inverso ao de sua mitigação. No trabalho isso também acontece. Idealmente, não deveria, claro. É óbvio que há situações em que o sujeito toma decisões erradas porque não avaliou adequadamente os riscos envolvidos. Contudo, em grande parte das ocasiões "jogamos" com as probabilidades visando alcançar determinados objetivos. Às vezes optamos por realizar atalhos no trabalho. Outras vezes resolvemos ser mais criteriosos e, obviamente, mais demorados. A noção do princípio ETTO (Efficiency-Thoroughness-Trade-Off) de Hollnagel ajuda a explicar como jogamos com as diferentes demandas do trabalho.

Há ainda uma outra questão muito importante para entender porque se recorre tanto ao conceito para explicar coisas que deram errado. Ela consiste no hábito de se interpretar as ações do sujeito envolvido no acidente com os critérios da situação posterior ao acidente. Esclarecendo: existe uma discrepância aguda entre a situação do sujeito envolvido num determinado acidente e o sujeito que o investiga a posteriori. Basta dizer que no momento anterior ao acidente tudo o que se pode conceber são probabilidades; umas mais fortes outras nem tanto. No momento posterior ao acidente o que existe é uma relação linear de causa e efeito que se expressou concretamente na realidade. Então no primeiro momento as relações são possíveis/prováveis enquanto no segundo as relações não são apenas certas mas necessárias; afinal, o fato ocorreu "assim e assado". Ao avaliar as ações do sujeito envolvido no acidente e tentar comprrendê-las é necessário, portanto, remontar à sua situação concreta: a de um ambiente de probabilidades subjetivas e não tomar como ponto de partida e referência o ambiente de relações estabelecidas ex post facto, que é propriamente o momento da investigação. Nós, seres humanos, jogamos conscientemente com probabilidades e não com fatos acontecidos. Se aquele que investiga não atentar para a diferença entre os dois momentos ele pensará: “mas é certo que ele não tinha idéia do perigo se o resultado era tão óbvio!”. E assim, confundindo o que é óbvio com o que era apenas provável (na cabeça do sujeito) ele não entende como alguém poderia "jogar" com o óbvio. E precisamente nesse ponto a falta de percepção de risco aparecerá como explicação preferencial.

A explicitação dessas questões refere-se simplesmente ao uso cotidiano e "rasteiro" da noção de percepção de risco e em nada diminui a importância de estudar esse tema. Continua a ser importante compreender como as pessoas interpretam e integram os diversos elementos da realidade e formam idéias sobre o que pode ou não acontecer. Nesse âmbito, o conhecimento dos processos é fundamental. É necessário entender a influência de fatores como a experiência, o conhecimento técnico, o estado afetivo, os valores individuais acerca da segurança, bem como outros muitos aspectos do contexto laboral sobre a percepção de risco. Continua a ser importante entender o que faz com que pessoas façam estimativas diferentes acerca dos riscos oferecidos numa mesma situação, qual o papel das heurísticas e, ademais, como o mesmo risco parece ser mais aceitável para uns que para outros. Esses aspectos devem, certamente, ser explorados de modo identificar a probabilidade de ocorrência de atos inseguros e, consequentemente, garantir melhores resultados em sua prevenção. Enfim, percepção de risco é um assunto muito rico. Importa, contudo, separar o trigo do joio e não permitir que o uso desse conceito seja acompanhado de idéias ingênuas sobre a ação humana.

sábado, 26 de maio de 2012

Voltando à Avaliação de Desempenho

Voltando ao tema da Psicologia da Avaliação de Desempenho no Trabalho...


De modo geral, há três posturas muito comuns com relação à avaliação de desempenho que atrapalham sua investigação. E podemos dizer que todas elas nse diferenciam na posição tomada no âmbito da relação entre a descrição fidedigna do processo e as prescrições ou discursos oficiais sobre objetivos e características da Avaliação de Desempenho (AD).

Isto posto, o problema pode ser resumido de três modos:


1)Frequentemente tomamos explícita ou implicitamente o discurso institucional (de uma enmpresa ou de experts da área) que justifica a existência da AD como o processo efetivamente realizado.O que significa, nesse caso, "tomar" as prescrições como descrição do processo? É aceitar a idéia geral de que o sistema funciona, ou deveria funcionar,da forma como foi concebido: primeiramente, as lideranças estabelecem indicadores de desempenho para suas equipes (metas, resultados, coportamentos desejados, etc) e, ao final, elas fornecem a sua avaliação sobre o desempenho real dos empregados, confrontando-o com os referidos indicadores. Dessa forma, assumimos de bom grado que os avaliadores simplesmente realizam o que o sistema pede: fornecem dados de desempenho sobre os empregados. Contudo, o que se diz de um processo é apenas um elemento que o compõe e, portanto, o esforço de compreensão não pode se resumir a esse nível da realidade. Por exemplo, não podemos compreender o que de fato é um determinado produto analisando apenas a propaganda que se faz dele, nem podemos aferir precisamente os objetivos de um político apenas estudando o seu discurso de campanha.
Como consequência de tal postura, não questionamos os resultados advindos de Avaliações de Desempenho e os utilizamos para todo e qualquer objetivo. Na psicologia isso tem importância fundamental, já que os os escores de desempenho são utilizados como variável dependente nas mais diversas formas de pesquisa (ex.: validação de instrumentos de seleção, avaliação de eficácia de treinamento).
Ex.: Em estudo sobre a relação de características medidas pelo Zulliger e Avaliação de Desempenho, realizado por Ferreira e Villemor-Amaral (2005), há apenas uma breve menção às dimensões de desempenho abordadas pelo instrumento de AD da empresa. Não há qualquer menção a características do sistema como um todo. Isso parece sugerir uma confiança na precisão das informações obtidas por meio da AD. Esse caso é bastante ilustrativo da importância de investigar sistemas de AD, pois os dados de validade preditiva do Zulliger dependem da validade do instrumento que mediu a variável dependente e, portanto, das informações obtidas mediante seu uso.


2)Outras vezes, não tomamos como certo o prescrito. Ao invés disso, identificamos incongruências entre prescrição e realidade, ou seja, percebemos certas discrepâncias entre o que se pretende alcançar e os resultados efetivos(ex.: os dez empregados de uma gerência com resultados idênticos e no topo da escala de avaliação). Contudo, ainda que percebamos o gap, voltamos nossa atenção para a análise de questões que não são essenciais para explicá-lo, embora sejam, de fato, importantes(qualidade dos instrumentos, “erros de percepção”, vieses, etc.). No exemplo citado imediatamente nos vem à mente a possibilidade de um "erro de leniência" e, ao aceitar imediatamente a hipótese, perdemos a oportunidade de compreender adequadamente o problema. Ademais, quando vislumbramos, ainda que de passagem, elementos essenciais da Avaliação de Desempenho, não lhes damos a devida atenção.
Ex.: Manuais como o de Robbins (livro bastante conhecido no Brasil) apontam como principais problemas do “mundo real” da avaliação de desempenho aquilo que o autor considera “erros": efeito halo, erros de leniência, viés de similaridade. Segue ainda na listagem mencionando o uso do processo com “propósitos políticos”. Embora explique de modo mais detalhado os três primeiros, deixa o último apenas na mera referência. As distorções deliberadas parecem alvos dignos apenas de condenação e não de investigação.
Em resumo, nesse caso o sujeito percebe que o processo não corre exatamente como no discurso, que os avaliadores nem sempre informam seu julgamento real sobre o desempenho do empregado. Porém, ao constatar ele toma dois caminhos: a) assume que o avaliador quer fazê-lo mas não consegue e aí atribui as discrepâncias a erros inadvertidos, ao instrumento, etc. b) reconhece que o avaliador não quer fazê-lo e aí não considera isso digno de investigação.

3)Finalmente há os casos em que percebemos a lacuna entre o processo ideal e o real e, ao fazê-lo, imediatamente condenamos os responsáveis pela sua existência.
Um exemplo claro dessa postura é o Dr. Deming que considera a Avaliação de Desempenho uma das “doenças fatais” da gestão.

Para melhor esclarecer a necessidade de mais investigações sobre a AD e também defender uma mudança em seu foco, vamos partir de algumas idéias gerais e relacionadas entre si.

1)Uma avaliação de desempenho necessariamente possui consequências relevantes para o empregado e para o avaliador. Neste sentido, podemos dizer que ela não é apenas um processo avaliativo mas integra um processo decisório mais amplo, para o qual, geralmente, mais informações são consideradas.

2)Os produtos concretos de uma avaliação de desempenho, ou seja, os escores de desempenho, são espécies de “compactados de significados” que podem refletir informações sobre diversos aspectos. De modo algum, podemos tomá-los a priori como uma simples resposta à pergunta: qual foi o desempenho deste trabalhador?

3)Se o escore não revela apenas informações sobre o que o avaliador considera ser o desempenho do empregado, decorre que avaliar desempenho não comporta apenas as atividades de percepção, interpretação, evocação e julgamento de informações sobre desempenho. O avaliador considera também a antecipação das consequências de uma avaliação: para si, para o empregado, para seu departamento, etc. Dito de outro modo, a atividade de atribuir um escore de desempenho implica a consideração de elementos do contexto em que a decisão de atribuir determinado escore efetivamente ocorre.

4)Sendo a Avaliação de Desempenho uma atividade que envolve, ao mesmo tempo, recordar eventos passados (ex.: que metas este empregado atingiu) e considerar probabilidades subjetivas construídas a partir da leitura de informações do contexto de avaliação (ex.: o que acontecerá a ele se eu realmente avaliar da forma que vejo) o resultado concreto reflete não necessariamente o que o avaliador considera ser o desempenho do empregado, mas principalmente as estratégias que esse avaliador empregou na SITUAÇÃO concreta de avaliar alguém. Portanto, as discrepâncias encontradas são, em grande parte, estratégias deliberadas e não “erros”.

5)Como todo processo em organizações de trabalho, a Avaliação de Desempenho envolve diferentes agentes e múltiplos interesses. À medida que os dados daí extraídos são utilizados em diversos fins (identificação de necessidades de treinamento, decisões sobre salário e carreira, fundamentação de casos judiciais, etc.)e alteram consideravelmente a dinâmica grupal e organizacional, resulta ingênuo pensarmos que o único interesse em jogo é o de aferir precisamente o desempenho de alguém.


Finalmente, uma questão essencial que atravéssa todas aquelas acima pode ser formulada da seguinte maneira:


O conhecido modelo de DeNisi decreve muito bem os processos cognitivos envolvidos na Avaliação e, portanto, é excelente para compreender como gestores captam, interpretam e julgam informações do trabalho de empregados com o objetivo de formular uma avaliaçao de seu desempenho. Contudo, o modelo assume que entre a formação dessa avaliação e a atribuição de escores não há tanta coisa pra se investigar. Pode-se dizer que é assumida (pelo menos implicitamente) a idéia de que a avaliação formulada na cabeça do avaliador será passada na íntegra para o papel, em forma de escores que a reflete de modo preciso. Mas é justamente no espaço entre a avaliação formada e a atribuição de escores que a investigação deve proceder, posto que este útlimo momento constitui uma decisão, para a qual as informações de contexto necessariamente serão tratadas e poderão afetar a precisão com que a avaliação será retratada no escore. É necessário então "abrir" o modelo precisamente nessa parte e integrar os resultados que já foram alcançados por estudos nesse âmbito. Dessa forma, alcançaremos uma compreensão mais completa do processo. E essa é premissa básica para que possamos estabelecer estratégias adequadas para garantir sistemas melhores.