Em nosso dia-a-dia, dizer que se fala o que se pensa independente da situação ou do seu interlocutor é, por vezes, emitir um elogio a si mesmo. Alguns orgulham-se de ter esse “jeito de ser”. Outros até nomeiam essa característica: “sou frontal”, “sincero” e “tenho personalidade” (coisa que, diga-se de passagem, provavelmente até o Kaspar Hauser tinha). Tais expressões dão ares de virtude a, muitas vezes, uma agressividade gratuita. Bem, mas isso não vem bem ao caso. Voltemos.
Enfim, pensar bem o que se diz, considerar o contexto em que se fala, os interlocutores a quem se fala, são estratégias muitas vezes associadas à fraqueza de caráter, à falsidade, à dissimulação. O ser humano “autêntico” deve dizer o que pensa. Dito isto, podemos passar a falar de Gestão de Impressões nas organizações.
O termo Gestão de Impressões (GI) pode ser utilizado para designar uma série de modelos e teorias que buscam explicar estratégias utilizadas pelos sujeitos para gerar (e gerir) identidades sociais adequadas às condições em que estes se encontram; e que sejam funcionais aos seus objetivos. Uma forma mais comum de definir a GI é concebê-la como “a tentativa deliberada de os indivíduos influenciarem as imagens que os outros formam deles”.
Tradicionalmente – e como fica claro na definição acima – estas estratégias têm sido abordadas sob um espectro moral, com forte destaque a seu caráter negativo, bem como tem sido comumente caracterizadas como enviezamentos e falsidades. Corolário óbvio de uma abordagem moral é, naturalmente, uma ação de combate à Gestão de Impressões.
Proponho uma forma alternativa de refletir sobre o tema. Uma abordagem moral é digamos pouco produtiva no sentido de produção de conhecimentos. Assim, ancorado em algumas proposições feitas por Gomes (1993) sugiro que uma análise diferente das estratégias podem revelar toda uma dimensão da vida organizacional, cuja visualização é impossível quando temos à ponta do nariz as lentes de uma visão normativa e moralista acerca do comportamento humano em geral - e nas organizações, especificamente).
Para essa reflexão escolho as atividades de gestão/liderança, campo onde podem ser evidenciados muitos comportamentos associados à GI. Contudo, ver o exercício da Gestão nos moldes tradicionais – onde a GI é vista como algo a ser contornado ou eliminado – é absolutamente limitador e proceder assim implica dificuldades intransponíveis no âmbito da compreensão dos fenômenos e, conseqüentemente, das intervenções daí resultantes.
A GI relaciona-se, sobretudo, com as estratégias de comunicação – entre sujeitos e/ou grupos – de apresentação de si, dos outros, da empresa, de seus atos, etc. Neste sentido a analisaremos.
Como afirmado acima, a forma tradicional de abordar o tema da gestão de impressões, ancorada em cânones da Psicologia Social Experimental, é normativa e moralista (o termo “deliberada” retrata bem isso). Neste sentido, a gestão de impressões é vista como algo que aleija os processos comunicacionais (na medida em que afeta sua transparência), que falseia a realidade.
O que Gomes propõe é ter em conta a GI, mas não no sentido de a denunciar. Ao mudar a perspectiva, proporcionamos uma nova inteligibilidade às estratégias associadas à GI. Revelamos outras dimensões para análise. Para isso, torna-se fundamental contrapor alguns dos pressupostos sobre os quais a literatura tradicional está assentada:
• que as estratégias de GI são empecilhos para a compreensão da realidade (uma vez que tem como objetivo “deliberadamente” “distorcer” a suposta real imagem do sujeito)
• que, independente das circunstâncias, os sujeitos estão sempre em busca de passar uma imagem positiva acerca de si e de seus atos.
Ao observar de modo mais cuidadoso o comportamento nas e das organizações, de seus diferentes grupos e principalmente de seus gestores vemos que tais pressupostos estão fragilmente alicerçados. São, de fato, apreensões demasiado parciais da realidade organizacional.
Em primeiro lugar, assumir que as estratégias de GI são empecilhos ao alcance de uma “verdade” subjacente é partir da premissa de que a transparência é a norma da comunicação organizacional, ou seja, de que a “boa” comunicação é aquela que garante que a mensagem chegue “ilesa” ao “receptor”. Ao aceitar tal premissa estaremos pintando um quadro substancialmente inexato da comunicação humana.
Ora, como Gomes o diz, uma comunicação transparente nas organizações, para além de não ser possível – pois há, inevitavelmente, mediações cognitivas, simbólicas e culturais e, ademais, negociação e atribuição ativa de sentido – pode não ser desejável, uma vez que a comunicação transparente gera efeitos de difícil gestão, expectativas difíceis de corresponder.
Em segundo lugar, está o pressuposto de que todos buscam, a qualquer momento dado, produzir nos outros uma imagem positiva de si mesmo e de seus atos. Para além de não ser verificável, tal pressuposto é assumido porque o nível de análise neste caso é o do indivíduo. Quando adicionamos o ambiente, a situação, a cultura organizacional, vemos que nem sempre as estratégias de GI vão no caminho da “boa impressão”. Causar uma boa impressão nem sempre é algo funcional a quem tem um objetivo específico a atingir. Como o próprio Gomes exemplifica, ao nível organizacional, às vezes é melhor parecer estar mal, para assim conseguir sobreviver (conseguir subsídios, renegociações de dívida, dilatação de prazos, etc.). No nível individual, apresentar-se mal frente a pares pode também significar mostrar-se consciente de seus defeitos, sensatez, e neste sentido, evitar críticas e maiores questionamentos.
Dito isto, importa abordar a GI enquanto leque de comportamentos estratégicos que são, antes de qualquer coisa, parte essencial do trabalho (principalmente do trabalho do gestor). Tais comportamentos desvelam a dimensão política e os elementos culturais da organização.
Daí a importância de não combater tais estratégias, mas analisar a forma com a qual estas de fato contribuem para a gestão eficaz da ação de organizar (comunicar). Não se trata de buscar identificar até que ponto elas estorvam o caminho a uma “verdade” escondida, mas analisar a medida em que permitem a emergência de outras “verdades”, de dimensões culturais da organização ou de sua configuração política, por exemplo.
Tal abordagem encontra apoio em alguns pressupostos básicos:
1. que a identidade social de um indivíduo é objeto de sua gestão e, ademais, fazer essa gestão não é necessariamente um comportamento negativo, mas antes, esperado.
Por exemplo, um gestor não se comunica da mesma forma com diferentes atores organizacionais. Ele pode, em dado momento, precisar transparecer compreensão, consideração ou condescendência aos seus empregados, para conseguir a coesão do grupo e sua aceitação como figura central. Numa reunião com a Diretoria pode ser preciso passar uma imagem de firmeza, de rigidez de modo a garantir uma boa imagem, algo que facilitará sua busca por recursos financeiros para seu orçamento. Enfim, embora a boa parte da Psicologia advogue a existência de uma necessidade intrínseca de consistência na identidade, o que se observa é, muito amiúde, uma flexibilidade e maleabilidade com a qual podemos nos apresentar socialmente, conforme nossas intenções.
2. que as estratégias empregadas para gerir impressões revela elementos culturais e políticos da organização
Por exemplo, Imaginemos uma empresa fortemente alicerçada sobre a meritocracia e que tem como principal característica a valorização do conhecimento técnico como requisito para o exercício da liderança. Certamente, para legitimar-se na função, boa parte das ações de um gestor dessa empresa será no sentido de mostrar o domínio técnico (investir na própria capacitação, tratar os problemas técnico-operacionais de perto, “bypassar” um operador inexperiente). Numa empresa altamente autoritária e hierarquizada um rompante tirânico e agressivo não necessariamente afetará a imagem do líder. Poderá até ser compreendido como um líder “legítimo” justamente por fazer uso das prerrogativas que o próprio sistema sócio-político da organização confere à função de liderar.
Em outras palavras, lançar mãos de estratégias para gerir impressões exige um conhecimento, por parte de quem as emprega, dos aspectos culturais e políticos de sua organização. Analisar tais estratégias constitui um profícuo caminho para o estudo da cultura, por exemplo.
Talvez esteja mais claro agora a razão pela qual os comportamentos enquadrados na GI tornam-se particularmente importantes (e freqüentes) nas funções gerenciais. Um elemento que contribui ainda para isso é o fato de que o gestor tem “que se explicar ou prestar contas do que faz e do que diz”. Além de prestar contas há que legitimar-se continuamente frente a uma diversidade de públicos, sendo fundamental para tanto, a gestão dos sentidos que possam ser atribuídos aos seus atos.
Essa constante busca por legitimidade é outro fator que faz com que gestores lancem mão de estratégias de GI. É um desafio constante do gestor satisfazer os diferentes critérios de legitimidade assumidos pelas diversas partes envolvidas no contexto organizacional – sindicato, subordinados, pares, diretoria, superior imediato, acionistas, comunidade, etc.
Aqui, ser transparente não é algo desejável, é antes um obstáculo ao exercício eficaz de sua função (dita assim a eficácia enquanto a capacidade de responder às demandas que se impõem e, conseqüentemente alcançar a legitimidade necessária). Por outro lado, e a depender da cultura da organização (além de outros aspectos), parecer transparente pode ser uma estratégia adequada embora de difícil execução. De qualquer forma, do ambiente ambíguo, complexo e incerto no interior do qual se precisa fazer gestão pode-se esperar muita coisa, menos transparência.
Considerando que transparência e racionalidade são elementos de extremo valor em sociedades democráticas, é compreensível que parte da legitimidade da liderança relacione-se com ambos os critérios (obviamente há variações em função das diferenças culturais, estruturais e políticas entre empresas). Mas como ser transparente e racional frente a uma complexa rede de stakeholders quando isso simplesmente não é possível e, por vezes, indesejável. Ou seja, mais que buscar a racionalidade e a transparência – por serem aspectos valorizados – de fato, importa, na maior parte das circunstâncias importa parecê-lo:
“a conceptualização dos aspectos políticos da gestão simbólica mostra como a racionalidade, os objectivos e as preferências podem ser perspectivados como emergindo da acção, em vez de guiarem a acção. (...) a gestão do simbolismo organizacional tem como finalidade legitimar as preferências da coligação dominante, assim como legitimar decisões passadas, redefinindo-as e apresentando-as, no presente, como estratégias. (...) mesmo depois de tomadas as decisões, os gestores continuam à procura de informação, mas o tipo de informação que procuram não diz respeito a alternativas de decisão, antes se relaciona com informação complementar que apóie e confirme as decisões já tomadas (p. 63)”
Em tomadas de decisão, por exemplo, o gestor é constantemente confrontado com um ambiente incerto, ambíguo, imprevisível. Ademais, ele verá que a consideração de todas as alternativas possíveis é impossível, haja vista a impossibilidade de ter em conta e processar toda a informação disponível. A decisão, portanto, exigirá do gestor a sua criatividade, as suas interpretações. Ao mesmo tempo terá ele que justificar a decisão tomada perante um grupo diverso de partes interessadas. Logo, a decisão racional e justa é aquela que é defensável, que permite a sua ampla defesa discursiva. Isso porque é necessário, antes de qualquer coisa, parecer racional.
Esse é um ponto de fundamental importância para compreender o papel do gestor. Ele é antes de tudo um “gestor de sentidos, um gestor de impressões”.
Em seu discurso ele precisará, em determinados momentos, combater as percepções de incerteza e ambiguidade ensejando um discurso de transparência, em outros um certo grau de opacidade será desejável para o alcance de seus objetivos. De uma forma ou de outra, é parte essencial de sua tarefa tentar constranger a liberdade interpretativa dos stakeholders acerca de sua imagem e de suas ações.
De modo resumido, as razões pelas quais o tema foi abordado aqui:
1. Para realçar a importância de estudarmos as estratégias de gestão de impressões nas organizações, bem como para demonstrar que uma visão normativa pouco nos acrescenta em termos teóricos e tampouco no campo da intervenção.
2. Para mostrar que a visão normativa sobre tais estratégias estão fundadas sobre premissas frágeis: a) os sujeitos não estão sempre em busca de causar impressões positivas; b) uma comunicação absolutamente transparente não é senão um objetivo moral – não há lugar para castelo de vidros nas organizações nem devemos buscá-los; c) que os sujeitos têm (e devem ter) uma necessidade de coerência, algo fundamental para a noção de uma identidade social única e pouco mutável;
3. Para deixar claro que a identidade social de um sujeito é sim objeto de sua gestão e isso não coloca sobre o mesmo qualquer espécie de aura de falsidade.
4. Para sinalizar que a análise de estratégias de GI pode ser uma excelente forma de compreender a cultura organizacional (crenças compartilhadas, pressupostos básicos, valores, etc.)
Mintzberg e o Folclore da Gestão.
A descrição que Mintzberg faz das atividades dos executivos revela dois pontos essenciais que vimos a abordar: que a comunicação ocupa espaço privilegiado na função de liderar e, ainda, permite-nos visualizar um exemplo da forma tradicional de conceber a GI.
Mintzberg começa por separar o “folclore” da “realidade” da função gerencial. Aquilo que o executivo declara fazer não é o que de fato faz. Se perguntado sobre seu papel, dirá que coordena, planeja, organiza, etc. Mintzberg trata essa discrepância como falha, e aponta-a como elemento constituinte de muitos dos problemas da administração.
Seguindo a linha que empregamos até agora, mais que buscar uma verdade oculta, a “realidade” do que o executivo faz e ver o discurso como falso ou simplesmente errado, cabe-nos sair do conteúdo da mensagem e ir além:
Muito mais que o conteúdo de sua resposta, interessa-nos o que o executivo que responde a estas perguntas “deixa transpirar” quando o faz. Ora, ao dizê-lo, ele deseja que seu papel seja visto sob o prisma da racionalidade, previsibilidade, inteligência, entre outras coisas. Essa é uma forma legítima de se apresentar, de parecer merecedor de seu cargo. Mas, de fato, planejar, organizar e coordenar dizem muito pouco do que o executivo de fato faz.
Dentro do que Mintzberg classifica como “reais” atividades do executivo estão vários papéis, os quais ilustram a importância de estratégias de GI. Na verdade, a maior parte dos dez papéis que o autor considera como a essência da função da gestão mantém essa forte relação.
Por exemplo, boa parte das atividades do gestor prende-se à imagem de chefe e consiste em atividades de natureza cerimonial as quais reiteram a autoridade e representatividade que precisa ser atribuída à figura do chefe. Em parte associado a este está o papel do líder, que engloba atividades ligadas ao exercício da liderança. Aqui, as atividades giram em torno da gestão da imagem que seus subordinados fazem dele: “será que ele aprova?”, “como ele gostaria que fosse feito esse relatório?”.
Mintzberg aponta ainda vários outros papéis fundamentais tais como o de “monitor”, “contato”, “porta-voz”, “manipulador de distúrbios”, “navegador” e, principalmente, “disseminador”. Essa análise do trabalho do gestor, empregada pelo autor, revela sobretudo a natureza comunicacional da atividade da liderar – bem como a natureza estratégica dos comportamentos neles implicados. Logo, liderar de modo eficaz é, em grande parte, comunicar de modo eficaz. Mas que não se entenda que a eficácia signifique clareza e transparência na comunicação.
O segundo ponto, é que as conclusões que efetua a partir da análise só são possíveis se enquadradas na visão tradicional de que tratamos aqui. Especificamente quando diz que as principais “dificuldades” enfrentadas pelo executivo constituem efeitos da ênfase que este dá em tratar informações de natureza verbal (na imprecisão de uma única cabeça), na recusa em fazer uso das informações sistemáticas em bases de dados técnicos. Neste sentido, o “hábito” do executivo médio está prejudicando o exercício ideal (entenda-se: racional) da função
A partir de sua visão acerca do que a função executiva deve (prescrição) ser, ele a analisa no seio de uma dicotomia infrutífera do ponto de vista da compreensão(Folclore – Realidade). Dicotomia esta que, aliás, enseja várias outras (Ruim – Bom; Falso – Verdadeiro) igualmente paralizantes. Assim, e como não poderia deixar de ser, ele propõe que um dos principais desafios do gestor é encontrar métodos sistemáticos que lhe permitam compartilhar suas informações privilegiadas. Ou seja, a solução é a transparência, a disseminação da "verdade".
Esta forma de ver a questão (como problema a ser resolvido) assenta-se sobre o ideal da transparência e, sobretudo, da racionalidade, como se fosse algo a ser buscado no exercício eficaz das funções gerenciais. Quando na verdade, muito amiúde, resolver as questões que se impõem, responder às múltiplas demandas que se apresentam e, ao mesmo tempo, ser racional e transparente são objetivos mutuamente excludentes. Ora, os mesmos processos que Mintzberg entende que estão na base de um problema, são aqueles que permitem a um gestor atender de modo eficaz as demandas que a ele se impõem.