Segue tradução de artigo excelente de Pfeffer e Sutton sobre Gestão baseada em evidências. Separarei em três partes. Abaixo posto a primeira.
Absurdos e meias-verdades na Gestão: Como praticar a gestão baseada em evidências
“Ao invés de nos interessar pelo que é novo, deveríamos estar interessados no que é verdadeiro" —Pfeffer's Law
"Se você acha que teve uma idéia nova, você está errado. Provavelmente alguém já a teve. Esta idéia tampouco é original, eu roubei de outra pessoa"
—Sutton's Law
A busca por informações e dados baseados em pesquisas é uma obsessão para aqueles que nos atuam nos mercados de ações. Nessa área, existe um verdadeiro batalhão de analistas, gestores de portfolio e investidores em geral que procuram extrair qualquer vantagem competitiva de tais pesquisas. Essa é talvez uma das razões pelas quais acadêmicos que se dedicam ao estudo e pesquisa em finanças (como, por exemplo, os ganhadores de Prêmio Nobel Myron Scholes, William Sharpe, e Michael Spence) tem sido convocados a trabalhar em Wall Street. A valorização progressiva de decisões de investimento baseadas em evidência também explica porque o recurso a informações privadas – inside trading – é tão rigorosamente regulamentada. DE modo semelhante, essa é a razão porque companhias americanas são proibidas de emitir informações para grupos seletos de analistas e investidores; elas devem, ao contrário, promover coletivas e anúncios simultaneamente acessíveis para o público em geral. A pesquisa quantitativa em mercados de ações é abundante. Empresas como Vanguard, Fidelity, Barclays Global Investors, e centenas de outras vem utilizando dados provenientes de pesquisas para desenvolver produtos e estratégias de investimento.
O potencial ganho advindo do uso de evidências provenientes de estudos válidos é ainda maior quando pensamos na gestão de empresas. Os mercados de ações estão entre os mais competitivos do mundo e, portanto, é difícil usifruir de vantagens informacionais informacionais por muito tempo. Inovações como “junk bonds”, “indexed mutual funds”, e derivativos, por exemplo, foram copiados à velocidade da luz tão logo passaram a ser implementados. No universo das práticas de gestão, imitação é bem mais lenta e menos eficaz; em parte porque tais práticas dependem do conhecimento tácito e das habilidades para implementação; não apenas em conhecimento sobre o que fazer mas sobre como fazer. Ademais, as práticas de gestão resistem ser copiadas em função do poder de precedentes e ideologia. Considere como a Southwest Airlines teve por muito tempo apenas para si o seu modelo de negócios obtendo níveis de lucro sem paralelo na indústria da aviação antes que a JetBlue e outras empresas começassem a copiá-la com sucesso. Ou então perceba o fracasso reiterado dos competidores em alcançar a Toyota em produtividade, qualidade e outros indicadores, ainda que a própria Toyota ofereça tours a seus competidores e que as bases de seu sistema de gestão já tenham sido objeto de várias publicações especializadas.
Em nossa prática, constatamos que a maioria dos gerentes tentam genuinamente agir com base na melhor evidência. Eles acompanham a imprensa especializada, compram livros de gestão, contratam consultores, e frequentam seminários com especialistas da área. As empresas às vezes se beneficiam desses esforços. Contudo, percebemos que os gerentes, de modo geral, fazem pouco uso e avaliam mal aquilo que chamamos de “gestão baseada em evidências"
Antes de qualquer coisa, a gestão baseada em evidências é uma forma de ver o mundo e pensar a respeito da gestão. Ela segue a partir da premissa de que utilizar fundamentos lóggicos e aplicar fatos na medida do possível permitem a gestores realizar melhor seu trabalho. A gestão baseada em evidências está ancorada na crença de que enfrentar os fatos acerca do que funciona e do que não funciona, compreender o perigo que representam as meias-verdades que constituem grande parte da sabedoria convencional sobre a gestão e rejeitar os absurdos que frequentemente passam por conselhos tecnicamente fundamentados, levará as organizações a um melhor desempenho.
Obstáculos no caminho para a implantação da Gestão Baseada em Evidências
Implementar a gestão baseada em evidências é uma jornada, não uma solução rápida. Ao longo do caminho você encontrará obstáculos. É nosso trabalho informar-lhes sobre os mais perniciosos problemas prováveis e dar sugestões sobre como evitá-los, ultrapassá-los ou, pelo menos, mitigar seus efeitos.
Usar dados modifica dinâmicas de Poder
Um ex-estudante que trabalhou na Netscape nos relatou que James Barksdale, um ex-CEO daquela empresa, falou, durante uma reunião, algo do gênero: “se a decisão for tomada com base em fatos (então), os fatos de quaisquer pessoas, desde que relevantes, estão em pé de igualdade. Se a decisão for tomada com base nas opinões das pessoas, então a minha conta bem mais”. O que esta anedota ilustra é que fatos e evidências são grandes niveladores da estrutura hierárquica. Portanto, parte da resistência a práticas baseadas em evidências emerge porque, quando feitas corretamente, elas de fato modificam dinâmicas de poder, substituindo a autoridade formal, a reputação e a intuição por conhecimento. Um comentarista, referindo-se à medicina baseada em evidências chamou isso de “substituir guerreiros por contadores”. Adotar a gestão baseada em evidências provoca reverberações similares no mundo corporativo. Líderes experientes são frequentemente vistos como heróis e venerados por sua sabedoria e capacidade de decisão. Diretores e presidentes poderiam perder muito de sua reputação à medida que suas intuições fossem substituídas, pelo menos às vezes, por juízos baseados em evidências disponíveis para virtualmente qualquer sujeito minimamente educado e com acesso às informações.
Porém, como pesquisas recentes realizadas por Rakesh Kliurana sugerem, líderes menos heróicos e que operam com base na melhor informação e avaliações podem, de fato, promover melhor desempenho organizacional. Isto significa que os gestores precisam tomar uma decisão fundamental: eles preferem ouvir que estão sempre certos ou querem liderar as organizações que de fado têm bom desempenho? Quando Gary Loveman da Harrah's disse a um grupo de estudantes de Stanford que ele frequentemente cometia enganos, que estava disposto a ouvir todos os fatos e análises e que seus fatos e análises não tinham privilégio sobre os demais, esta não era uma mera expressão da verve politicamente correta. Loveman é uma pessoa extremamente competitiva e quer que a Harrah´s tenha sucesso — e o sucesso requer reunir a verdade e a melhor informação para a tomada de decisão e não a deferência a pessoas com base em títulos, posições hierárquicas ou coisas do gênero. Esse tipo de cultura igualitária foi, supostamente, a norma no Vale do Silício — e é ainda evidente em lugares como a Google, com sua orientação acadêmica e de longo prazo. Mas os egos avultam também em empresas do ramo de alta tecnologia e as evidências freqüentemente afetam egos inflados.
Existe uma clara implicação disso tudo para a seleção de gestores – evite a todo custo as pessoas que acreditam que sabem de tudo. Elas não sabem. Pior que isso, elas são incapazes de levar em consideração quaisquer fatos que estejam em desacordo com seus preconceitos. Por essa razão, um de nossos ditados favoritos é “quando duas pessoas sempre concordam, uma delas é desnecessária”. Este é um princípio que nós dois temos aplicado ao prestar consultoria para líderes sobre como interagir com outras pessoas, ajudar empresas a contratar novos empregados ou mesmo aplicando à busca por um coautor de estudos e artigos.
As pessoas não gostam de ouvir a verdade
A frase “não atire no mensageiro” contém uma grande quantidade de verdade. Ela ilustra, sobretudo, o fato de que dar más notícias não é algo que geralmente conquista amizades. As pessoas gostam de dar boas notícias, independente de quão válidas elas sejam, principalmente porque a maior parte delas parece preferir ouvir boas notícias.
O insight importante aqui é que para se ter uma mentira são necessárias duas partes - a pessoa que diz a mentira e, com bastante frequência, o ouvinte que sinaliza de várias maneiras que ela ou ele quer ser enganado(a). Como Gary Loveman explica, suponhamos que ele vá para um cassino que não está funcionando bem. Se a liderança na instalação diz-lhe que eles entendem perfeitamente o problema e sabem como corrigí-lo, ele pode pegar seu vôo de volta se sentindo bem, com a sensação de que as coisas vão melhorar. Se em vez disso dizem-lhe que já tentaram um monte de coisas – basicamente tudo o que podiam imaginar – e que o casino ainda está perdendo para a competição, Loveman e sua equipe têm que efetivamente resolver o problema; possivelmente, ele próprio precisará dar más notícias ao seu chefes, ao conselho de administração, e não poderá voltar contente e seguro.
Mas o importante é que eles podem corrigir o problema, porque possuem dados e fatos. Construir uma cultura de dizer a verdade e agir sobre os fatos requer uma enorme quantidade de auto-disciplina para não apenas estar disposto a ouvir a verdade, por mais desagradável que seja, mas para realmente incentivar as pessoas a dar más notícias, contanto que sejam verdadeiras. Kent Thiry, o CEO da DaVita, disse-nos que os gerentes experientes em sua companhia buscam ativamente problemas e más notícias. Isso porque a boa notícia não demanda quaisquer decisões ou ações; é a má notícia que cria a necessidade de fazer algo para corrigir a falha. E você não pode consertar as coisas ou direcionar esforço e talento para tratar problemas, a menos que você saiba sobre eles. Há realmente apenas uma maneira de contornar essa relutância em enfrentar os fatos: é precisamente compreender consciente e sistematicamente a propensão psicológica das pessoas para querer dar e ouvir boas notícias e, de modo sistemático, trabalhar ativamente contra a mesma.
Para a prática da gestão baseada em evidências você primeiro precisa saber a verdade. E é melhor saber a verdade cedo, quando a situação pode ser remediada, do que mais tarde, quando pode ser tarde demais para fazer alguma coisa
O Mercado de idéias de gestão é confuso e ineficiente
Existe ainda uma outra barreira para a prática de gestão baseada em evidências: o estado lastimável do mercado de idéias de gestão. A triste verdade é que qualquer gestor sensato, consultor ou agente de mudança que sonda o mercado em busca de conhecimento de gestão recebe, de imediato, uma enxurrada de grandes quantidades de conselhos enganadores. O mercado de idéias de gestão está acometido por diversos problemas interrelacionados que afetam qualquer um que busque seriamente a prática da gestão baseada em evidências.
Em primeiro lugar, existe muita informação para uma única pessoa consumir. Há pelo menos uma centena de revistas e jornais dedicados a questões de negócios e gestão. Há pelo menos 30 mil livros de negócios em desenvolvimento e aproximadamente 3.500 novos são publicados a cada ano.
Em segundo lugar, recomendações díspares e desconexas sobre a prática de gestão raramente são integradas de uma forma que torne fácil – ou até mesmo possível – pensar sobre as mesmas. Considere, por exemplo, o livro Business: The Ultimate Resource, uma espécie de enciclopédia que pesa mais de oito quilos e possui 2.172 páginas de grandes dimensões. Os autores alegam que o livro “tornar-se-á o sistema operacional de qualquer organização ou qualquer pessoa em negócios”. Esta alegação é obviamente falaciosa, uma vez que um bom sistema operacional, or definição, se encaixa de forma perfeita e lógica e, infelizmente esta coleção de mais de 150 ensaios e artigos constitui um conjunto aleatório de partes de sugestões e conselhos desconexos. Nenhum esforço perceptível é feito para ligar quaisquer destas partes. Business oferece conselhos sobre uma variedade estonteante de temas, desde a criação de um lugar divertido para trabalhar, passando pelo cálculo do capital de giro, criação de marcas poderosas, até a criação de um website. Além disso, ao leitor não é dada quase nenhuma informação sobre que evidências, teorias ou princípios lógicos sustentam essas milhares de diretrizes, tornando impossível a análise e avaliação da qualidade das mesmas.
Em terceiro lugar, os conselhos que gestores recebem da vasta e sempre crescente oferta de livros de negócios, artigos, gurus e consultores são extremamente inconsistentes. Considere as seguintes recomendações conflitantes, elaboradas diretamente a partir de livros de negócios populares:
a) "contrate um Presidente carismático" b) "contrate um Presidente modesto".
c) "abrace a teoria da complexidade d) "busque a simplicidade"
e) "torne-se uma organização focada em estratégia" f) "não perca muito tempo com planejamento estratégico, pois é de pouco valor".
Quanto mais você olha, mais confuso e desconcertante fica. A tabela 1 (formatação não permite postar aqui) é apenas uma pequena amostra das recomendações conflitantes que gestores obtém do mercado de livros de negócios. Pior ainda, considerando que nem sempre é facil distinguir bons de maus conselhos, gestores são constantemente induzidos a acreditar e, conseqüentemente, implementar práticas de negócios ineficazes. Isso acontece em parte porque consultores e profissionais que vendem idéias e técnicas são sempre recompensados por realizarem um trabalho, só às vezes recompensados por fazerem um bom trabalho, e quase nunca recompensados em função da relação entre seu trabalho e a melhoria do desempenho da companhia. A situação pode ser ainda mais perversa: se os problemas de uma empresa cliente são apenas parcialmente resolvidos, isso gera mais trabalho para a empresa de consultoria.
O executivo sênior de uma consultoria de recursos humanos, por exemplo, disse-nos que, porque programas de remuneração baseada em desempenho quase nunca funcionam bem, os serviços de consultoria são requeridos mais e mais vezes para reparar os problemas decorrentes da implantação desses programas, que seus clientes compraram dessas mesmas empresas. Da mesma forma, enquanto estávamos escrevendo o nosso último livro, um sócio sênior de uma grande empresa de consultoria, comentou que a reengenharia de processos que sua firma tinha conduzido havia sido uma das melhores coisas que já aconteceram. Primeiro, a empresa fez um monte de dinheiro implantando, como consultoria, a reengenharia. Em seguida, fez ainda mais dinheiro com os mesmos clientes, porque descobriu-se que muitas das pessoas "desnecessárias" removidas durante os esforços de reengenharia estavam, de fato, fazendo um trabalho necessário.O resultado foi que seus próprios consultores foram aqueles selecionados para fazer o mesmo trabalho – claro, a um preço muito mais alto – que as pessoas que eles substituíram desempenhavam.
Se você acha que nossas colocações são muito duras, pergunte à sua empresa de consultoria favorita que prova eles têm de que seus conselhos ou técnicas realmente funcionam e avalie as evidências que venham a oferecer usando algumas das diretrizes que apresentaremos mais adiante neste artigo. Há alguns anos, o consultor sênior da Bain, Darrell Rigby, começou a conduzir a única pesquisa que encontramos sobre o uso de várias técnicas e práticas de gestão. Rigby destaca como é estranha a facilidade com que se pode obter boas informações sobre produtos como pasta de dente e cereais, e, ao mesmo tempo, a dificuldade de se encontrar informação sobre as intervenções pelas quais as empresas gastam literalmente milhões para implementar. Mesmo a pesquisa da Bain, ainda que notável em seu mérito, mede apenas a presença e persistência de vários programas e as avaliações subjetivas feitas acerca dos mesmos.
Outro ponto falho do mercado de ideias de gestão é a abundância de analogias superficiais que de alguma forma atraem gestores de todo tipo. Duas das nossas favoritas são: aquelas que têm sido usadas para justificar sistemas de avaliação de curva forçada, tornada famosa através do CEO da General Electric; e a analogia entre negócio e guerra, que tem sido usada para argumentar a favor de medidas duras em relação a concorrência e, ocasionalmente, em direção às próprias pessoas (que são vistos como "males necessários").
Jack Welch, ex-CEO da GE, construiu o argumento para o ranking de curva forçada, uma prática de gestão bastante controversa, da seguinte forma: as pessoas são classificadas na escola; por que, então, elas não deveriam ser classificadas no trabalho? Isso leva à (razoável) conclusão de que as notas na escola são normalmente atribuídas sobre uma base essencialmente comparativa.
Primeiro de tudo – e ironicamente, dada a utilização desta analogia – as evidências sugerem fortemente que os alunos aprendem melhor quando eles não são classificados e certamente quando eles não são classificados em uma curva. Mas colocando este fato de lado, considere uma diferença crucial entre escola e trabalho. Na escola há relativamente pouco impacto da interdependência no desempenho; se você aprender química e seus colegas não, isso não afeta seriamente seu desempenho em química. Aprender é uma questão de você, individualmente, dominar um assunto específico. Cooperação ou trabalho em equipe na escola, pelo menos nos testes, é chamado de trapaça. Por outro lado, as organizações de trabalho são tipicamente cheias de ações interdependentes, onde a sua capacidade de realizar algo depende, essencialmente, da ajuda e cooperação dos outros. Então, se a classificação na curva provoca competição e conflito, as consequências serão muito diferentes entre contextos onde existe interdependência e onde não existe.
Seguir a analogia do negócio como guerra pode ser igualmente enganosa. A analogia implica que você sempre tem como objetivo aleijar e destruir os concorrentes bem como evitar a cooperação com outras empresas em seu setor. No entanto, se essa lógica tivesse sido seguida o Napa Valley nunca se teria tornado uma região vinícola de alto prestígio. Quando Robert Mondavi começou sua vinícola em 1966, ele trabalhou para melhorar a reputação e a qualidade de cada vinícola do vale, e não apenas de sua própria. Essa cooperação preparou as bases para o famoso "Julgamento de Paris" em 1976, onde prestigiados críticos de vinhos franceses confundiram os vinhos da Califórnia com aqueles, classificando os californianos como superiores. Embora os vinhos Mondavi tenham sido provados, os produtores do Chateau Montelena (o top branco) e do Stag's Leap (o top vermelho) apressaram-se para agradecer Mondavi por ajudá-los a ter sucesso. Na verdade, ambos os vencedores, Mike Grgich e Warren Winiarski, tinham trabalhado para Mondavi antes de sair, com sua bênção, para começar suas próprias vinícolas. A generosidade de Mondavi valeu a pena: ele e sua empresa lucraram quando os preços dos vinhos da região como um todo dispararam depois do Concurso de 1976. No entanto, se você ler um editorial de Harvard sobre a vinícola de Robert Mondavi, escrito pelo pesquisador em estratégia Michael Porter, perceberá que ele considera apenas a forma como Mondavi concorre com outras vinícolas californianas como Kendall-Jackson e Gallo. Aparentemente, o foco de Peter na útil, porém incompleta, analogia da “estratégia competitiva” evitou que ele percebesse (ou mencionasse) a cooperação que beneficiou a empresa de Mondavi quando a mesma usufruía do crescente prestígio de Napa Valley.
Psicologia no Trabalho e nas Organizações
Plataforma de discussão da psicologia organizacional e do trabalho abordando tanto as questões da prática profissional como da investigação científica na área.
quinta-feira, 8 de agosto de 2013
sexta-feira, 17 de maio de 2013
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
A esquizofrenia e o arremedo de ciência
Há pouco mais de dois anos, me deparei com uma referência da Professora Mary Boyle, em artigo de Kenneth Gergen. Resolvi comprar o livro. Trata-se de um texto devastador sobre o conceito de esquizofrenia. Resumindo, a autora mostra que 1) nunca se identificou claramente um padrão de sinais e sintomas relacionados entre si; 2) que, portanto, a busca por "antecedentes" é inócua, uma vez que só faz sentido buscar causas de fenômenos materialmente existentes, 3) que há discrepâncias irreconciliáveis entre o que Kraepelin (alegado "descobridor") chamou de esquizofrenia e o que hoje são os critérios diagnósticos da síndrome 4) que, consequentemente, a continuidade forjada na literatura é meramente retórica, 5) que a pesquisa contemporânea sobre o assunto é repleta de incoerências e fraudes desmedidas.
Isso é apenas um resumo dos pontos levantados e que no livro estão amplamente documentados. Resolvi traduzir partes importantes do livro e parei pelo meio de um capítulo; o sétimo. Segue tradução para aqueles que se interessam. E pensem: na psicologia e na ciência em geral há casos e mais casos análogos a esse e que não passam por qualquer crítica razoável. Muito amiúde falamos de conceitos "mal-criados" como se fossem coisas do mundo real.
Boyle, M. (1990) Schizophrenia: A scientific delusion? London: Routledge
Capítulo 7 - Sustentando e Mantendo “Esquizofrenia”: Linguagem, Argumentos e Benefícios
O conceito de esquizofrenia persiste na presença de dois grandes paradoxos. O primeiro é relativo à reivindicação de seu status científico (NOTA 1), o qual ostensivamente justifica o uso da “esquizofrenia”, bem como a busca por suas causas e curas. Como vimos, tal reivindicação é absolutamente falsa. O segundo paradoxo é o fato de ser bastante comum, por parte daqueles que sustentam o conceito de esquizofrenia, que se façam afirmações que são, para sermos diretos, absurdas, embora sejam claramente apresentadas como sensatas. Por exemplo, se transferirmos para a física ou a química a preocupação do DSM-IV em estabelecer critérios para inferência de seus conceitos que sejam “amigáveis” e de simples entendimento, ela seria motivo de escárnio; assim como o seria a afirmação de Andreasen e Carpenter de que os critérios para inferir esquizofrenia do DSM-IV são, ao mesmo tempo, “arbitrários” e de “validade robusta” para alguns propósitos. De modo similar, a introdução, feita por Spitzer, do uso de critérios diagnósticos específicos (a ligação entre conceitos e manifestações observáveis) como uma “nova abordagem ao diagnóstico psiquiátrico” (1971: 451) bem como a declaração no DSM-IV desta abordagem como uma “inovação metodológica” (1994: xvii), são francamente embaraçosas, uma vez que referem-se a um processo tão básico na ciência que seria o mesmo que um chef anunciar uma inovação metodológica na cozinha – que se deve ligar o forno primeiro.
O principal objetivo deste capítulo é tornar inteligível tal contexto; discutir como e porque a “esquizofrenia” sobrevive à despeito de suas bases teórica e empírica absolutamente frágeis; e como ela é cercada de afirmações que frequentemente fazem pouco sentido no campo científico no interior do qual a “esquizofrenia” alegadamente se situa. O ponto de partida de nossa discussão é a idéia de que a “esquizofrenia” tornou-se parte de nossa realidade – um distúrbio ou doença, descoberta certa vez e que agora passa a ser diagnosticada em indivíduos, os quais são tratados e investigados. A pergunta chave é: como essa versão da realidade foi alcançada e como tem sido mantida, como ela pôde ser tomada como razoável e inevitável? Tal questão assume que a manutenção da “esquizofrenia” é um processo ativo que requer trabalho e esforço e não algo que simplesmente acontece porque “esquizofrenia” é “verdade”.
Examinarei estas questões de quatro maneiras. A primeira é através de uma análise das formas particulares de linguagem que sistematicamente constróem o conceito de esquizofrenia. Em segundo lugar, examinarei alguns argumentos específicos frequentemente usados para sustentar a “esquizofrenia” e fazê-la parecer razoável. Terceiro, eu discutirei o que podem ser chamados hábitos de pensamento – formas habituais com as quais todos gerimos a complexidade do mundo – os quais têm importante relevância na plausibilidade da “esquizofrenia”. Estas três seções tratarão da aparente razoabilidade da “esquizofrenia”. A seção final, a “desejabilidade” da esquizofrenia, será abordada em termos dos benefícios que confere ao público e profissões bem como o papel que estes desempenham na sobrevivência do conceito.
Linguagem e a construção “realística” da “esquizofrenia”
Sobre “esquizofrenia” fala-se e escreve-se como se a linguagem utilizada simplesmente refletisse uma realidade já descoberta ou prestes a ser desvendada. Tal visão representacionista da linguagem tem sido fortemente contestada por uma séria de idéias teóricas, as quais têm em comum o pressuposto de que aquilo que pensamos como realidade ou verdade não é algo descoberto e descrito, mas construído, essencialmente através do uso estratégico da linguagem (e.g. Foucault, 1976, 1979; Potter & Wetherell, 1987; Parker, 1992; Gergen, 1999). Nesta lógica, a linguagem é concebida não apenas como uma transmissora da realidade (Parker et al. 1995), mas como um meio de construir ativamente a realidade.
A idéia de discurso é central para essa abordagem (Foucault, 1976). “Discurso” refere-se a padrões ou regularidades na forma como falamos ou escrevemos (e, consequentemente, pensamos) sobre fenômenos específicos, os quais tem efeitos significativos. O discurso, portanto, não diz respeito apenas a palavras; falar ou escrever sobre um “objeto” de um modo específico é “produzir” e fazer parecer razoável uma versão específica da realidade (e.g. existem pessoas com transtornos mentais e eles não são responsáveis por seus atos); é também convidar ou fazer parecer razoável tipos específicos de ações e respostas (e.g. que tais pessoas não deveriam ser punidas) e fazer parecer outros tipos de ações (e.g. mandá-los à prisão) irrazoáveis ou mesmo impensáveis. O discurso, portanto, está intimamente ligado a práticas e instituições sociais.
Obviamente, as diferentes formas de falar e diferentes versões da realidade não gozam de status equivalentes. Na sociedade ocidental, aquelas versões sobre eventos físicos, mentais e corporais oferecidas por aquilo que consideramos ciência e medicina gozam de maior crédito e têm maior probabilidade de ganhar o espaço público, bem como, inversamente, menor probabilidade de que sejam desafiadas por praticamente quaisquer outros sistemas de pensamento – por exempo, a religião ou a astrologia. Não é obra do acaso, portanto, que a “esquzofrenia” seja amplamente construída no seio destes dois prestigiosos sistemas; examinarei a “esquizofrenia” em relação a cada um destes sistemas, antes de abordar as formas como eles podem se ajudar reciprocamente na construção da “equizofrenia” como algo razoável.
“Esquizofrenia” e o Discurso Científico
Como Kirk e Kutchins (1992) afirmaram, a ciência e as imagens da ciência são utilizadas na “luta por influência, posição e vantagem” e são usadas por profissões “como formas de se apresentar e de apresentar suas expertises ao público para conseguir legitimidade e notoriedade” (p. 247). Uma forma de fazer isso é, obviamente, utilizar massivamente as palavras “ciência” e “científico” e contar com as formas partilhadas de compreensão acerca das implicações de tais termos. Como vimos, a literatura em torno do DSM-IV – assim como o próprio manual – é caracterizada por frequentes referências a “ciência” e a termos relacionados como “pesquisa” e “evidência empírica”. Existe, contudo, um grande número de formas mais sutis com as quais a literatura sobre “esquizofrenia” recorre a representações da ciência. A primeira forma é através daquiloque veio a ser chamado de discurso ou repertório empiricista (Potter et al. 1990; Gilbert & Mulkay, 1984), uma forma sistemática de falar e escrever que permite aos pesquisadores apresentar seus conceitos e teorias preferidas como decisões neutras, objetivas, sem qualquer envolvimento de interesses e preferências pessoais. No escrever científico, tal impressão é alcançada, por exemplo, pelo uso da voz passiva (“a pesquisa foi planejada”; “o estudo foi conduzido”) bem como pelo uso de frases que sugerem que a pesquisa meramente descobre “fatos” (“os resultados mostram que...”; “a pesquisa encontrou...”; “foi descoberto que...”; entre outros). Obviamente, é muito mais fácil manter esta aparência neutra quando falamos sobre coisas do que pessoas, principalmente sobre coisas que envolvem medidas técnicas e complexas. É significativo, portanto, que muito da literatura sobre “esquizofrenia” seja voltada para eventos físicos tais como química cerebral, dimensão ventricular, e marcadores genéticos. Este foco não apenas produz a impressão de que “esquizofrenia” é uma doença orgânica, como também mantém a idéia de uma realidade descrita objetivamente. E quando eventos físicos não são estudados, uma impressão de neutralidade pode ainda ser assegurada através do uso de experimentos, questionários padronizados com opções de respostas previamente estabelecidas; em outras palavras, através de procedimentos que criam distância entre pesquisador e pesquisado.
O processo de diagnosticar esquizofrenia, contudo, representa uma ameaça potencial à aura de neutralidade, uma vez que é inteiramente baseada no julgamento, por parte do clínico, acerca de comportamentos e relatos de experiências privadas. Tal problema foi recentemente destacado pelo questionamento por parte de uma jornalista à avaliação médica de um famoso político: “você consegue observar (o estado mental) precisa ou cientificamente ou é através de sua obervação e conversa com a pessoa?” (BBC Radio 4 World at One, 17 February 2000). Nesta dicotomia, o diagnóstico da esquizofrenia seria considerado claramente “impreciso” e “não científico”. Não é surpreendente, portanto, que tanto esforço tenha sido despendido para criar uma impressão de objetividade através do uso de critérios disgnósticos acordados, alegadamente derivados de pesquisas empíricas. Sabshin (1990), por exemplo, argumentou que o sucesso do DSM-III fora “profundamente influenciado pela necessidade de objetificação na psiquiatria americana” (1972). Em outras palavras, os idealizadores do DSM estavam bem conscientes da dicotomia inerente à pergunta da jornalista e tentaram tenazmente contorná-la. E não devemos subestimar a importância de tal esforço: se a “esquizofrenia” pode ser “encontrada” objetivamente nas pessoas através do diagnóstico ela deve, em algum sentido, existir e ter suas causas. Dessa forma, a falha de pesquisadores em encontrar tais cuasas poderá ser tolerada quase que indefinidamente. O DSM-IV e seus antecessores buscaram criar uma impressão do diagnóstico como uma atividade neutra e objetiva ao alegar que eles não categorizam pessoas (o que pode não parecer neutro), mas “transtornos (mentais) que as pessoas têm” (1994; xxii)(NOTA 2) . Distúrbios mentais são, portanto, representados como algo “lá fora”, que possuem uma existência separada que pode ser determinada objetivamente.
O uso de um discurso empiricista para representar a pesquisa e a prática como objetivas, e portanto razoáveis, está intimamente ligado a uma segunda forma de de falar e escrever que pode ser denominada de repertório técnico-racional (Schon, 1983; Kirk &Kutchins, 1992) NOTA 3). Existem duas características fundamentais neste repertório. A primeira é o uso de linguagem altamente especializada cujo sentido não encontra-se acessível ao público leigo. A segunda, é a apresentação de um grande número de questões como problemas técnicos, suscetíveis à aplicação de técnicas racionais e especializadas de resolução de problemas. Um dos aspectos mais importantes desta forma de falar é a representação de problemas como potencialmente solúveis por grupos de especialistas específicos. O primeiro artigo discutido no capítulo 5, o qual estabeleceu “princípios e abordagens norteadoras para o desenvolvimento do DSM-IV” em relação à “esquizofrenia” (Andreasen & Carpenter, 1993) constitui um excelente exemplo do uso do discurso técnico-racional para sustentar a “esquizofrenia” e fazer a busca por critérios diagnósticos parecer algo razoável. O artigo utiliza claramente os dois aspectos do discurso técnico-racional: o uso de uma linguagem técnica especializada (ex.: “abordagem da moderna biométrica”, “taxas básicas”, “sensibilidade e especificidade de sintomas”, “análise discriminante”) e a apresentação de um problema (nesse caso, a falta de um conjunto válido de Regras de Correspondência para “esquizofrenia”) como uma questão meramente técnica, a ser resolvida pela quantificação das “taxas básicas, sensibilidade e especificidade para cada sintoma incluído no conjunto de critérios diagnósticos”. Como demonstrei no capítulo 5, as idéias em torno de taxas básicas, etc. foram mal apresentadas e inteiramente inapropriadas para o problema conceitual enfrentado pelos criadores do DSM-IV; não obstante, o poder retórico desta linguagem técnica para fazer a busca por regras de correspondência para a esquizofrenia parecer razoável e provavelmente bem sucedida, está bastante claro.
Eu também demonstrei no capítulo 5 que no exato momento em que seria questionado – quando da publicação do DSM-IV – este discurso técnico-racional foi substituído por uma nova versão, na qual o problema da definição de “esquizofrenia” seria abordado no futuro, através de “validação correlacional clinico-patológica utilizando as novas técnicas da neurociência” (Andreasen & Carpenter, 1993, 205). A importância deste processo de mudança na linguagem técnica e na representação de problemas e soluções é enfatizada por Kirk e Kutchins (1992) na discussão acerca de uma fase anterior do desenvolvimento do DSM, na qual a questão da confiabilidade (e não as taxas básicas, etc.) era o destaque. Em sua minuciosa análise da questão no DSM-III, Kirk e Kutchins analisaram os processos através dos quais a falta de confiabilidade diagnóstica passou “de um problema conceitual e prático seriamente ameaçador, para um problema técnico, o qual deveria ser deixado a cargo de experts, que alcançariam soluções técnicas” (13-14). Como Kirk e Kutchins apontaram, o poder desta postura reside parcialmente na forte implicação de que se o problema da falta de confiabilidade diagnóstica está prestes a ser solucionado, então a solução para o problema ainda mais ameaçador da validade não poderia estar tão longe. Isto é, obviamente, um disparate, mas o efeito mais amplo é fazer o uso contínuo da “esquizofrenia” e outros conceitos diagnósticos parecerem razoáveis. Não apenas isso, mas a contínua mudança na linguagem técnica ao longo dos anos para se adequar às demandas do momento – da confiabilidade a taxas básicas e da especificidade dos sintomas à validação correlacional clinico-patológica – pode não ser detectada ou, pior, ser confundida com progresso. (NOTA 4)
Os discursos Empiricista e Técnico-Racional estão claramente relacionados e ambos são capazes de criar um ar de razoabilidade em torno de uma versão particular da realidade. Eles podem produzir este efetio, contudo, de formas diferentes e complementares. O discurso empiricista pode criar a impressão de que uma versão particular da realidade foi objetivamente descoberta, que ela apenas “está aí”. Tais narrativas têm a propriedade de, como Kirk e Kutchins afirmam, embotar a curiosidade, tornando os questionamentos menos prováveis. Narrativas técnico-racionais, por outro lado, tendem a mistificar; a linguagem e técnica altamente especializadas da ciência estão além da compreensão da maior parte dos leigos. Tal mistificação está bem representada na resposta oferecida por um físico vencedor do Prêmio Nobel para a pergunta feita por um jornalista, a qual requeria a descrição da pesquisa que o levou ao prêmio: “se eu conseguisse descrevê-la a você, eu não teria ganho o prêmio Nobel por ela”. O discurso técnico-racional, portanto, pode não embotar tanto a curiosidade mas pode nos deixar relutante em questionar; de fato, podemos não ter a menor idéia de que tipo de questão seria minimamente apropriada. Não apenas isso, mas a linguagem altamente especializada, utilizada por aqueles que reivindicam a autoridade da ciência, pode ser aceita simplesmente porque supomos que deve ser verdadeira ou significativa (por que eles falariam dessa forma se não fosse?). Esta relutância ao questionamento, contudo, permite uma versão da realidade tornar-se dominante e quanto menos ela é questionada, menos nos parece que precisa ser questionada. A mistificação, obviamente, pode ser um subproduto não intencional da pesquisa científica; não é intrinsecamente negativa ou ameaçadora. Mas como Kirk e Kutchins demonstraram, falar para não especialistas tem suas vantagens:
“os ouvintes não encontram-se em posição para avaliar criticamente a informação científica, os métodos utilizados para obtê-la, a precisão das interpretações oferecidas. Isto confere aos cientista uma certa liberdade.” (1992: 179)
E, como vimos, esta liberdade parece ter sido utilizada com execessiva frequência no caso da “esquizofrenia”
“Esquizofrenia” e o discurso da medicina
O segundo maior campo discursivo que sustenta a idéia de esquizofrenia é o da medicina. Como no discurso científico, a questão de interesse aqui é como o discurso ou repertórios da medicina funcionam para sustentar a “esquizofrenia”, fazê-la parecer razoável, permitir seu uso persistente e continuado compreensível, ainda que em face de severos problemas empíricos e conceituais. Examinarei alguns aspectos gerais da linguagem médica que envolvem e constróem a “esquizofrenia”, antes de discutir o papel conjunto dos discursos médico e científico, bem como as vantagens adicionais oferecidas pelo primeiro, na manutenção e proteção do conceito de esquizofrenia.
“Esquizofrenia” e a linguagem cotidiana da medicina
A “esquizofrenia” é construída no seio daquilo que podemos chamar linguagem cotidiana da medicina. Os comportamentos e experiências a partir das quais ela é inferida são denominadas sintomas e sinais; a “esquizofrenia” é identificada através de “diagnóstico” e modificada através de “terapêutica”. Um dos mais importantes efeitos dessa linguagem é que a mesma constrói “esquizofrenia” pública e profissionalmente como um objeto ou fenômeno tido como certo; se determinados comportamentos são considerados sintomas ou sinais de esquizofrenia, então, a esquizofrenia deve, em certo sentido, estar causando os mesmos; se a esquizofrenia pode ser identificada através do diagnóstico, então, ela deve, em certo sentido, ainda que abstrato, “existir”; se ela pode ser tratada, então deve ser, em certo sentido, passível de modificações. Não apenas isso, mas dessa forma são obscurecidos os processos históricos pelos quais esta linguagem médica pasou a ser aplicada a comportamentos perturbadores, para então a linguagem parecer simplesmente correta e apropriada. Mas como demonstrei, a linguagem de sintomas e sinais, diagnóstico e tratamento da forma como utilizada na medicina é passível de tradução para a linguagem mais ampla da ciência, onde sintomas e sinais tornam-se padrões de regularidades, os quais servem como regras de correspondência para conceitos; onde o diagnóstico torna-se o reconhecimento de padrões previamente identificados pesquisadores e suas inferências aos conceitos originais, e assim por diante. O problema na “esquizofrenia”, como vimos anteriormente, é que tal tradução não pode ser feita; a partir de Kraepelin, os comportamentos e experiências parecem ter sido interpretados como sintomas ou sinais de esquizofrenia de acordo como um conjunto de regras e procedimentos diversos e obscuros; não apenas isso, mas a palavra “sinal” tem sido utilizada de um modo bastante diverso daquele utilizado no discurso médico, frequentemente como um termo intercambiável ao termo “sintoma” ou para referir-se a qualquer atributo passível de mensuração “objetiva”. De modo similar, “um diagnóstico de esquizofrenia” deve significar algo diferente do reconhecimento de um padrão previamente identificado, uma vez que nenhum padrão que justificasse a inferência de um conceito tenha sido efetivamente observado.
Mas esse problema da tradução pode ser difícil de identificar, até porque a tradução de “sintoma”, “sinal” e “diagnóstico” para a linguagem mais ampla do ciência não é tão frequentemente encontrada em artigos médicos, com exceção de fontes teóricas e filosóficas especializadas. O público e muitos profissionais podem, portanto, não entender prontamente a que estes termos se referem em contextos médicos, ainda menos considerando seus significados bastante distintos no âmbito da psiquiatria. A linguagem médica, portanto, funciona como um disfarce extraordinariamente eficaz, que cria uma impressão ilegítima da similaridade entre os conceitos médicos e o conceito da esquizofrenia, conferindo assim à “esquizofrenia” uma aura de razoabilidade e respeitabilidade que, de outra forma, seria impossível sustentar.
Um outro aspecto da linguagem médica cotidiana de particular importância nas discussões sobre o diagnóstico psiquiátrico, incluindo esquizofrenia, é o conceito de doença (mental), distúrbio ou enfermidade. De fato, a quantidade de atenção dada a tais conceitos na psiquiatria – tanto em seu ataque como em sua defesa – ilustra a importância percebida. Eu discutirei alguns argumentos específicos relacionados a “doença mental” e distúrbio mental” mais adiante , mas simplesmente adianto brevemente que os conceitos gerais de doença ou distúrbio mental são absolutamente centrais para a menutenção do conceito de esquizofrenia. Primeiro, se é possível ser dito que distúrbio mental ou doença mental são coisas que existem, ou que são pelo menos conceitos válidos, então parece fazer sentido falar sobre distúrbios ou doenças específicas tais como esquizofrenia(e em muitas discussões, parece ser ponto pacífico que qualquer coisa que possa ser chamada de um distúrbio mental, então é certamente esquizofrenia). E a idéia de doenças, distúrbios ou enfermidades específicasé essencial ao uso da linguagem de sintomas, sinais e diagnóstico uma vez que o ato de denominar comportamentos como sintomas ou sinais carrega uma pergunta implícita: sintomas ou sinais de que? Como mencionei no primeiro capítulo, a questão não é apropriada – estamos realmente para qual conceito estes fenômenos constituem regras de correspondência? – embora tam maneira de falar tenha se tornado tão comum que se algum psiquiatra pretende usar termos como sinais ou sintomas ele deve ter uma resposta para a pergunta “sinais ou sintomas de que?” em termos de doenças ou distúrbios específicos. Uma segunda razão pela qual os termos genéricos “doença” ou “distúrbio” mental são tão importantes é que se a validade de um “distúrbio” específico é contestada, parece natural que é apenas necessário um ajuste do conceito ou a subsitituição por um outro, e não um re-exame de todo o sistema de pensamento. Finalmente, os termos “doença” ou “distúrbio mental” mantém viva a idéia de que tais “doenças” possuem uma causa física ou biológica, mesmo quando tentativas de encontrá-las não tenham qualquer sucesso.
(NOTA 1) Uma vez que se reivindica o status científico ao conceito de Esquizofrenia, é apenas natural que o mesmo seja avaliado segundo os parâmetros que regem a ciência (por mais diversidade que “ciência” possa representar). Neste sentido, o primeiro capítulo discute exaustivamente a Validade de “esquizofrenia”. A constatação é que o mesmo não preenche qualquer requisito básico (e.g. um padrão de manifestações – sintomas e/ou sinais – nunca foi identificado para que justificasse a inferência de tal conceito) que justifique sua existência e manutenção. Como exemplo, Boyle oferece a comparação com o conceito de Diabetes, o qual, entre outras coisas, foi de fato inferido a partir da identificação de um padrão de regularidades: um grupo de sintomas que se relacionam entre si, com antecedentes comuns e que permitiam predições sobre o curso de manifestações futuras.
(NOTA 2) O processo descrito por Boyle resume bem os objetivos do uso do discurso científico no caso da esquizofrenia. Trata-se de tentar retratar o conceito como uma mera representação de algo que existe “lá fora” e não como um conceito construído social e historicamente.
(NOTA 3) Assim como a autora ao longo de todo o livro, utilizo aqui os termos repertório e discurso como sinônimos.
(NOTA 4) A construção narrativa que sugere uma imagem de progresso é de fato uma das características marcantes do discurso científico.
Isso é apenas um resumo dos pontos levantados e que no livro estão amplamente documentados. Resolvi traduzir partes importantes do livro e parei pelo meio de um capítulo; o sétimo. Segue tradução para aqueles que se interessam. E pensem: na psicologia e na ciência em geral há casos e mais casos análogos a esse e que não passam por qualquer crítica razoável. Muito amiúde falamos de conceitos "mal-criados" como se fossem coisas do mundo real.
Boyle, M. (1990) Schizophrenia: A scientific delusion? London: Routledge
Capítulo 7 - Sustentando e Mantendo “Esquizofrenia”: Linguagem, Argumentos e Benefícios
O conceito de esquizofrenia persiste na presença de dois grandes paradoxos. O primeiro é relativo à reivindicação de seu status científico (NOTA 1), o qual ostensivamente justifica o uso da “esquizofrenia”, bem como a busca por suas causas e curas. Como vimos, tal reivindicação é absolutamente falsa. O segundo paradoxo é o fato de ser bastante comum, por parte daqueles que sustentam o conceito de esquizofrenia, que se façam afirmações que são, para sermos diretos, absurdas, embora sejam claramente apresentadas como sensatas. Por exemplo, se transferirmos para a física ou a química a preocupação do DSM-IV em estabelecer critérios para inferência de seus conceitos que sejam “amigáveis” e de simples entendimento, ela seria motivo de escárnio; assim como o seria a afirmação de Andreasen e Carpenter de que os critérios para inferir esquizofrenia do DSM-IV são, ao mesmo tempo, “arbitrários” e de “validade robusta” para alguns propósitos. De modo similar, a introdução, feita por Spitzer, do uso de critérios diagnósticos específicos (a ligação entre conceitos e manifestações observáveis) como uma “nova abordagem ao diagnóstico psiquiátrico” (1971: 451) bem como a declaração no DSM-IV desta abordagem como uma “inovação metodológica” (1994: xvii), são francamente embaraçosas, uma vez que referem-se a um processo tão básico na ciência que seria o mesmo que um chef anunciar uma inovação metodológica na cozinha – que se deve ligar o forno primeiro.
O principal objetivo deste capítulo é tornar inteligível tal contexto; discutir como e porque a “esquizofrenia” sobrevive à despeito de suas bases teórica e empírica absolutamente frágeis; e como ela é cercada de afirmações que frequentemente fazem pouco sentido no campo científico no interior do qual a “esquizofrenia” alegadamente se situa. O ponto de partida de nossa discussão é a idéia de que a “esquizofrenia” tornou-se parte de nossa realidade – um distúrbio ou doença, descoberta certa vez e que agora passa a ser diagnosticada em indivíduos, os quais são tratados e investigados. A pergunta chave é: como essa versão da realidade foi alcançada e como tem sido mantida, como ela pôde ser tomada como razoável e inevitável? Tal questão assume que a manutenção da “esquizofrenia” é um processo ativo que requer trabalho e esforço e não algo que simplesmente acontece porque “esquizofrenia” é “verdade”.
Examinarei estas questões de quatro maneiras. A primeira é através de uma análise das formas particulares de linguagem que sistematicamente constróem o conceito de esquizofrenia. Em segundo lugar, examinarei alguns argumentos específicos frequentemente usados para sustentar a “esquizofrenia” e fazê-la parecer razoável. Terceiro, eu discutirei o que podem ser chamados hábitos de pensamento – formas habituais com as quais todos gerimos a complexidade do mundo – os quais têm importante relevância na plausibilidade da “esquizofrenia”. Estas três seções tratarão da aparente razoabilidade da “esquizofrenia”. A seção final, a “desejabilidade” da esquizofrenia, será abordada em termos dos benefícios que confere ao público e profissões bem como o papel que estes desempenham na sobrevivência do conceito.
Linguagem e a construção “realística” da “esquizofrenia”
Sobre “esquizofrenia” fala-se e escreve-se como se a linguagem utilizada simplesmente refletisse uma realidade já descoberta ou prestes a ser desvendada. Tal visão representacionista da linguagem tem sido fortemente contestada por uma séria de idéias teóricas, as quais têm em comum o pressuposto de que aquilo que pensamos como realidade ou verdade não é algo descoberto e descrito, mas construído, essencialmente através do uso estratégico da linguagem (e.g. Foucault, 1976, 1979; Potter & Wetherell, 1987; Parker, 1992; Gergen, 1999). Nesta lógica, a linguagem é concebida não apenas como uma transmissora da realidade (Parker et al. 1995), mas como um meio de construir ativamente a realidade.
A idéia de discurso é central para essa abordagem (Foucault, 1976). “Discurso” refere-se a padrões ou regularidades na forma como falamos ou escrevemos (e, consequentemente, pensamos) sobre fenômenos específicos, os quais tem efeitos significativos. O discurso, portanto, não diz respeito apenas a palavras; falar ou escrever sobre um “objeto” de um modo específico é “produzir” e fazer parecer razoável uma versão específica da realidade (e.g. existem pessoas com transtornos mentais e eles não são responsáveis por seus atos); é também convidar ou fazer parecer razoável tipos específicos de ações e respostas (e.g. que tais pessoas não deveriam ser punidas) e fazer parecer outros tipos de ações (e.g. mandá-los à prisão) irrazoáveis ou mesmo impensáveis. O discurso, portanto, está intimamente ligado a práticas e instituições sociais.
Obviamente, as diferentes formas de falar e diferentes versões da realidade não gozam de status equivalentes. Na sociedade ocidental, aquelas versões sobre eventos físicos, mentais e corporais oferecidas por aquilo que consideramos ciência e medicina gozam de maior crédito e têm maior probabilidade de ganhar o espaço público, bem como, inversamente, menor probabilidade de que sejam desafiadas por praticamente quaisquer outros sistemas de pensamento – por exempo, a religião ou a astrologia. Não é obra do acaso, portanto, que a “esquzofrenia” seja amplamente construída no seio destes dois prestigiosos sistemas; examinarei a “esquizofrenia” em relação a cada um destes sistemas, antes de abordar as formas como eles podem se ajudar reciprocamente na construção da “equizofrenia” como algo razoável.
“Esquizofrenia” e o Discurso Científico
Como Kirk e Kutchins (1992) afirmaram, a ciência e as imagens da ciência são utilizadas na “luta por influência, posição e vantagem” e são usadas por profissões “como formas de se apresentar e de apresentar suas expertises ao público para conseguir legitimidade e notoriedade” (p. 247). Uma forma de fazer isso é, obviamente, utilizar massivamente as palavras “ciência” e “científico” e contar com as formas partilhadas de compreensão acerca das implicações de tais termos. Como vimos, a literatura em torno do DSM-IV – assim como o próprio manual – é caracterizada por frequentes referências a “ciência” e a termos relacionados como “pesquisa” e “evidência empírica”. Existe, contudo, um grande número de formas mais sutis com as quais a literatura sobre “esquizofrenia” recorre a representações da ciência. A primeira forma é através daquiloque veio a ser chamado de discurso ou repertório empiricista (Potter et al. 1990; Gilbert & Mulkay, 1984), uma forma sistemática de falar e escrever que permite aos pesquisadores apresentar seus conceitos e teorias preferidas como decisões neutras, objetivas, sem qualquer envolvimento de interesses e preferências pessoais. No escrever científico, tal impressão é alcançada, por exemplo, pelo uso da voz passiva (“a pesquisa foi planejada”; “o estudo foi conduzido”) bem como pelo uso de frases que sugerem que a pesquisa meramente descobre “fatos” (“os resultados mostram que...”; “a pesquisa encontrou...”; “foi descoberto que...”; entre outros). Obviamente, é muito mais fácil manter esta aparência neutra quando falamos sobre coisas do que pessoas, principalmente sobre coisas que envolvem medidas técnicas e complexas. É significativo, portanto, que muito da literatura sobre “esquizofrenia” seja voltada para eventos físicos tais como química cerebral, dimensão ventricular, e marcadores genéticos. Este foco não apenas produz a impressão de que “esquizofrenia” é uma doença orgânica, como também mantém a idéia de uma realidade descrita objetivamente. E quando eventos físicos não são estudados, uma impressão de neutralidade pode ainda ser assegurada através do uso de experimentos, questionários padronizados com opções de respostas previamente estabelecidas; em outras palavras, através de procedimentos que criam distância entre pesquisador e pesquisado.
O processo de diagnosticar esquizofrenia, contudo, representa uma ameaça potencial à aura de neutralidade, uma vez que é inteiramente baseada no julgamento, por parte do clínico, acerca de comportamentos e relatos de experiências privadas. Tal problema foi recentemente destacado pelo questionamento por parte de uma jornalista à avaliação médica de um famoso político: “você consegue observar (o estado mental) precisa ou cientificamente ou é através de sua obervação e conversa com a pessoa?” (BBC Radio 4 World at One, 17 February 2000). Nesta dicotomia, o diagnóstico da esquizofrenia seria considerado claramente “impreciso” e “não científico”. Não é surpreendente, portanto, que tanto esforço tenha sido despendido para criar uma impressão de objetividade através do uso de critérios disgnósticos acordados, alegadamente derivados de pesquisas empíricas. Sabshin (1990), por exemplo, argumentou que o sucesso do DSM-III fora “profundamente influenciado pela necessidade de objetificação na psiquiatria americana” (1972). Em outras palavras, os idealizadores do DSM estavam bem conscientes da dicotomia inerente à pergunta da jornalista e tentaram tenazmente contorná-la. E não devemos subestimar a importância de tal esforço: se a “esquizofrenia” pode ser “encontrada” objetivamente nas pessoas através do diagnóstico ela deve, em algum sentido, existir e ter suas causas. Dessa forma, a falha de pesquisadores em encontrar tais cuasas poderá ser tolerada quase que indefinidamente. O DSM-IV e seus antecessores buscaram criar uma impressão do diagnóstico como uma atividade neutra e objetiva ao alegar que eles não categorizam pessoas (o que pode não parecer neutro), mas “transtornos (mentais) que as pessoas têm” (1994; xxii)(NOTA 2) . Distúrbios mentais são, portanto, representados como algo “lá fora”, que possuem uma existência separada que pode ser determinada objetivamente.
O uso de um discurso empiricista para representar a pesquisa e a prática como objetivas, e portanto razoáveis, está intimamente ligado a uma segunda forma de de falar e escrever que pode ser denominada de repertório técnico-racional (Schon, 1983; Kirk &Kutchins, 1992) NOTA 3). Existem duas características fundamentais neste repertório. A primeira é o uso de linguagem altamente especializada cujo sentido não encontra-se acessível ao público leigo. A segunda, é a apresentação de um grande número de questões como problemas técnicos, suscetíveis à aplicação de técnicas racionais e especializadas de resolução de problemas. Um dos aspectos mais importantes desta forma de falar é a representação de problemas como potencialmente solúveis por grupos de especialistas específicos. O primeiro artigo discutido no capítulo 5, o qual estabeleceu “princípios e abordagens norteadoras para o desenvolvimento do DSM-IV” em relação à “esquizofrenia” (Andreasen & Carpenter, 1993) constitui um excelente exemplo do uso do discurso técnico-racional para sustentar a “esquizofrenia” e fazer a busca por critérios diagnósticos parecer algo razoável. O artigo utiliza claramente os dois aspectos do discurso técnico-racional: o uso de uma linguagem técnica especializada (ex.: “abordagem da moderna biométrica”, “taxas básicas”, “sensibilidade e especificidade de sintomas”, “análise discriminante”) e a apresentação de um problema (nesse caso, a falta de um conjunto válido de Regras de Correspondência para “esquizofrenia”) como uma questão meramente técnica, a ser resolvida pela quantificação das “taxas básicas, sensibilidade e especificidade para cada sintoma incluído no conjunto de critérios diagnósticos”. Como demonstrei no capítulo 5, as idéias em torno de taxas básicas, etc. foram mal apresentadas e inteiramente inapropriadas para o problema conceitual enfrentado pelos criadores do DSM-IV; não obstante, o poder retórico desta linguagem técnica para fazer a busca por regras de correspondência para a esquizofrenia parecer razoável e provavelmente bem sucedida, está bastante claro.
Eu também demonstrei no capítulo 5 que no exato momento em que seria questionado – quando da publicação do DSM-IV – este discurso técnico-racional foi substituído por uma nova versão, na qual o problema da definição de “esquizofrenia” seria abordado no futuro, através de “validação correlacional clinico-patológica utilizando as novas técnicas da neurociência” (Andreasen & Carpenter, 1993, 205). A importância deste processo de mudança na linguagem técnica e na representação de problemas e soluções é enfatizada por Kirk e Kutchins (1992) na discussão acerca de uma fase anterior do desenvolvimento do DSM, na qual a questão da confiabilidade (e não as taxas básicas, etc.) era o destaque. Em sua minuciosa análise da questão no DSM-III, Kirk e Kutchins analisaram os processos através dos quais a falta de confiabilidade diagnóstica passou “de um problema conceitual e prático seriamente ameaçador, para um problema técnico, o qual deveria ser deixado a cargo de experts, que alcançariam soluções técnicas” (13-14). Como Kirk e Kutchins apontaram, o poder desta postura reside parcialmente na forte implicação de que se o problema da falta de confiabilidade diagnóstica está prestes a ser solucionado, então a solução para o problema ainda mais ameaçador da validade não poderia estar tão longe. Isto é, obviamente, um disparate, mas o efeito mais amplo é fazer o uso contínuo da “esquizofrenia” e outros conceitos diagnósticos parecerem razoáveis. Não apenas isso, mas a contínua mudança na linguagem técnica ao longo dos anos para se adequar às demandas do momento – da confiabilidade a taxas básicas e da especificidade dos sintomas à validação correlacional clinico-patológica – pode não ser detectada ou, pior, ser confundida com progresso. (NOTA 4)
Os discursos Empiricista e Técnico-Racional estão claramente relacionados e ambos são capazes de criar um ar de razoabilidade em torno de uma versão particular da realidade. Eles podem produzir este efetio, contudo, de formas diferentes e complementares. O discurso empiricista pode criar a impressão de que uma versão particular da realidade foi objetivamente descoberta, que ela apenas “está aí”. Tais narrativas têm a propriedade de, como Kirk e Kutchins afirmam, embotar a curiosidade, tornando os questionamentos menos prováveis. Narrativas técnico-racionais, por outro lado, tendem a mistificar; a linguagem e técnica altamente especializadas da ciência estão além da compreensão da maior parte dos leigos. Tal mistificação está bem representada na resposta oferecida por um físico vencedor do Prêmio Nobel para a pergunta feita por um jornalista, a qual requeria a descrição da pesquisa que o levou ao prêmio: “se eu conseguisse descrevê-la a você, eu não teria ganho o prêmio Nobel por ela”. O discurso técnico-racional, portanto, pode não embotar tanto a curiosidade mas pode nos deixar relutante em questionar; de fato, podemos não ter a menor idéia de que tipo de questão seria minimamente apropriada. Não apenas isso, mas a linguagem altamente especializada, utilizada por aqueles que reivindicam a autoridade da ciência, pode ser aceita simplesmente porque supomos que deve ser verdadeira ou significativa (por que eles falariam dessa forma se não fosse?). Esta relutância ao questionamento, contudo, permite uma versão da realidade tornar-se dominante e quanto menos ela é questionada, menos nos parece que precisa ser questionada. A mistificação, obviamente, pode ser um subproduto não intencional da pesquisa científica; não é intrinsecamente negativa ou ameaçadora. Mas como Kirk e Kutchins demonstraram, falar para não especialistas tem suas vantagens:
“os ouvintes não encontram-se em posição para avaliar criticamente a informação científica, os métodos utilizados para obtê-la, a precisão das interpretações oferecidas. Isto confere aos cientista uma certa liberdade.” (1992: 179)
E, como vimos, esta liberdade parece ter sido utilizada com execessiva frequência no caso da “esquizofrenia”
“Esquizofrenia” e o discurso da medicina
O segundo maior campo discursivo que sustenta a idéia de esquizofrenia é o da medicina. Como no discurso científico, a questão de interesse aqui é como o discurso ou repertórios da medicina funcionam para sustentar a “esquizofrenia”, fazê-la parecer razoável, permitir seu uso persistente e continuado compreensível, ainda que em face de severos problemas empíricos e conceituais. Examinarei alguns aspectos gerais da linguagem médica que envolvem e constróem a “esquizofrenia”, antes de discutir o papel conjunto dos discursos médico e científico, bem como as vantagens adicionais oferecidas pelo primeiro, na manutenção e proteção do conceito de esquizofrenia.
“Esquizofrenia” e a linguagem cotidiana da medicina
A “esquizofrenia” é construída no seio daquilo que podemos chamar linguagem cotidiana da medicina. Os comportamentos e experiências a partir das quais ela é inferida são denominadas sintomas e sinais; a “esquizofrenia” é identificada através de “diagnóstico” e modificada através de “terapêutica”. Um dos mais importantes efeitos dessa linguagem é que a mesma constrói “esquizofrenia” pública e profissionalmente como um objeto ou fenômeno tido como certo; se determinados comportamentos são considerados sintomas ou sinais de esquizofrenia, então, a esquizofrenia deve, em certo sentido, estar causando os mesmos; se a esquizofrenia pode ser identificada através do diagnóstico, então, ela deve, em certo sentido, ainda que abstrato, “existir”; se ela pode ser tratada, então deve ser, em certo sentido, passível de modificações. Não apenas isso, mas dessa forma são obscurecidos os processos históricos pelos quais esta linguagem médica pasou a ser aplicada a comportamentos perturbadores, para então a linguagem parecer simplesmente correta e apropriada. Mas como demonstrei, a linguagem de sintomas e sinais, diagnóstico e tratamento da forma como utilizada na medicina é passível de tradução para a linguagem mais ampla da ciência, onde sintomas e sinais tornam-se padrões de regularidades, os quais servem como regras de correspondência para conceitos; onde o diagnóstico torna-se o reconhecimento de padrões previamente identificados pesquisadores e suas inferências aos conceitos originais, e assim por diante. O problema na “esquizofrenia”, como vimos anteriormente, é que tal tradução não pode ser feita; a partir de Kraepelin, os comportamentos e experiências parecem ter sido interpretados como sintomas ou sinais de esquizofrenia de acordo como um conjunto de regras e procedimentos diversos e obscuros; não apenas isso, mas a palavra “sinal” tem sido utilizada de um modo bastante diverso daquele utilizado no discurso médico, frequentemente como um termo intercambiável ao termo “sintoma” ou para referir-se a qualquer atributo passível de mensuração “objetiva”. De modo similar, “um diagnóstico de esquizofrenia” deve significar algo diferente do reconhecimento de um padrão previamente identificado, uma vez que nenhum padrão que justificasse a inferência de um conceito tenha sido efetivamente observado.
Mas esse problema da tradução pode ser difícil de identificar, até porque a tradução de “sintoma”, “sinal” e “diagnóstico” para a linguagem mais ampla do ciência não é tão frequentemente encontrada em artigos médicos, com exceção de fontes teóricas e filosóficas especializadas. O público e muitos profissionais podem, portanto, não entender prontamente a que estes termos se referem em contextos médicos, ainda menos considerando seus significados bastante distintos no âmbito da psiquiatria. A linguagem médica, portanto, funciona como um disfarce extraordinariamente eficaz, que cria uma impressão ilegítima da similaridade entre os conceitos médicos e o conceito da esquizofrenia, conferindo assim à “esquizofrenia” uma aura de razoabilidade e respeitabilidade que, de outra forma, seria impossível sustentar.
Um outro aspecto da linguagem médica cotidiana de particular importância nas discussões sobre o diagnóstico psiquiátrico, incluindo esquizofrenia, é o conceito de doença (mental), distúrbio ou enfermidade. De fato, a quantidade de atenção dada a tais conceitos na psiquiatria – tanto em seu ataque como em sua defesa – ilustra a importância percebida. Eu discutirei alguns argumentos específicos relacionados a “doença mental” e distúrbio mental” mais adiante , mas simplesmente adianto brevemente que os conceitos gerais de doença ou distúrbio mental são absolutamente centrais para a menutenção do conceito de esquizofrenia. Primeiro, se é possível ser dito que distúrbio mental ou doença mental são coisas que existem, ou que são pelo menos conceitos válidos, então parece fazer sentido falar sobre distúrbios ou doenças específicas tais como esquizofrenia(e em muitas discussões, parece ser ponto pacífico que qualquer coisa que possa ser chamada de um distúrbio mental, então é certamente esquizofrenia). E a idéia de doenças, distúrbios ou enfermidades específicasé essencial ao uso da linguagem de sintomas, sinais e diagnóstico uma vez que o ato de denominar comportamentos como sintomas ou sinais carrega uma pergunta implícita: sintomas ou sinais de que? Como mencionei no primeiro capítulo, a questão não é apropriada – estamos realmente para qual conceito estes fenômenos constituem regras de correspondência? – embora tam maneira de falar tenha se tornado tão comum que se algum psiquiatra pretende usar termos como sinais ou sintomas ele deve ter uma resposta para a pergunta “sinais ou sintomas de que?” em termos de doenças ou distúrbios específicos. Uma segunda razão pela qual os termos genéricos “doença” ou “distúrbio” mental são tão importantes é que se a validade de um “distúrbio” específico é contestada, parece natural que é apenas necessário um ajuste do conceito ou a subsitituição por um outro, e não um re-exame de todo o sistema de pensamento. Finalmente, os termos “doença” ou “distúrbio mental” mantém viva a idéia de que tais “doenças” possuem uma causa física ou biológica, mesmo quando tentativas de encontrá-las não tenham qualquer sucesso.
(NOTA 1) Uma vez que se reivindica o status científico ao conceito de Esquizofrenia, é apenas natural que o mesmo seja avaliado segundo os parâmetros que regem a ciência (por mais diversidade que “ciência” possa representar). Neste sentido, o primeiro capítulo discute exaustivamente a Validade de “esquizofrenia”. A constatação é que o mesmo não preenche qualquer requisito básico (e.g. um padrão de manifestações – sintomas e/ou sinais – nunca foi identificado para que justificasse a inferência de tal conceito) que justifique sua existência e manutenção. Como exemplo, Boyle oferece a comparação com o conceito de Diabetes, o qual, entre outras coisas, foi de fato inferido a partir da identificação de um padrão de regularidades: um grupo de sintomas que se relacionam entre si, com antecedentes comuns e que permitiam predições sobre o curso de manifestações futuras.
(NOTA 2) O processo descrito por Boyle resume bem os objetivos do uso do discurso científico no caso da esquizofrenia. Trata-se de tentar retratar o conceito como uma mera representação de algo que existe “lá fora” e não como um conceito construído social e historicamente.
(NOTA 3) Assim como a autora ao longo de todo o livro, utilizo aqui os termos repertório e discurso como sinônimos.
(NOTA 4) A construção narrativa que sugere uma imagem de progresso é de fato uma das características marcantes do discurso científico.
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